Presidente dos Estados Unidos debateu situação do Brasil e do Vietnã na Casa Branca
Quarenta
e seis dias antes de ser assassinado em Dallas, no Texas, o presidente
americano John F. Kennedy indagou, em reunião na Casa Branca, se os
Estados Unidos poderiam “intervir militarmente” no Brasil para depor o
então presidente João Goulart. A informação está na edição revista e
ampliada de A Ditadura Envergonhada, que será lançada em fevereiro pela Intrínseca. A
pergunta de Kennedy é reveladora de como os Estados Unidos cogitaram
uma ação armada que socorreria um golpe no país para derrubar Jango.
Washington se preparava para um cenário de guerra civil, mas, como se
sabe, não foi preciso oferecer mais do que apoio diplomático aos
militares que promoveram o golpe de Estado no Brasil em 31 de março e 1o de abril de 1964.
A indagação de Kennedy se deu no primeiro dos dois dias seguidos de reuniões de cúpula do governo americano, em 7 e 8 de outubro de 1963, quando se discutiu a situação do Brasil e do Vietnã (aos 20min).
No primeiro encontro, Kennedy, Lincoln Gordon, embaixador americano no Brasil, e outras autoridades debateram o contexto brasileiro. Os americanos temiam que, além do caos institucional e do descontrole econômico no país, as propostas de reformas de base defendidas por Jango fossem implementadas. A reunião deixava claro que os Estados Unidos estavam preparados para uma ação militar, caso o governo Goulart aprofundasse a plataforma de esquerda, “fidelista”, e fosse colocado diante de uma sedição das Forças Armadas.
No segundo encontro, o assunto discutido era outro golpe de Estado, este prestes a ocorrer, que moldaria a política americana na década seguinte: o governo decidira apoiar a ação da Central Intelligence Agency (CIA), que se envolvera com o golpe de generais que depuseram e mataram o presidente sul-vietnamita Ngo Dinh Diem. Era o início do atoleiro americano no Vietnã.
A gravação desses encontros foi posta na internet pela Biblioteca Kennedy há pelo menos um ano e encontrada durante uma pesquisa em ferramenta de busca. Procurada na semana passada, a biblioteca não informou a data em que a gravação foi liberada e disponibilizada na rede. O áudio integra um conjunto de gravações clandestinas efetuadas pelo próprio Kennedy de suas reuniões desde 1962, quando, por coincidência, deu início à série gravando um encontro com Gordon. Nesse dia, o diplomata já afirmava a Kennedy que o golpe militar era uma opção para se resolver a crise política brasileira.
Os grampos do presidente americano foram desmantelados logo após o seu assassinato, ainda em 1963, com a ajuda da fiel secretária dele, Evelyn Lincoln. A existência dessas gravações era conhecida por poucos. Só em 1975 a família Kennedy liberaria 260 horas de gravações. Em 1997, descobriram-se mais cinco horas de conversas gravadas durante a crise com Cuba. Finalmente, em 2001, foi lançado o livro The presidential recordings, organizado por Timothy Naftali – em três volumes estão todas as conversas de julho de 1962, início do grampo, a 21 de outubro do mesmo ano, quando a crise com Cuba esfriou.
A Biblioteca John Kennedy não fez transcrição oficial da reunião em que se discutiu a situação brasileira e a vietnamita, o que obriga os pesquisadores a trabalhar com a versão do áudio existente, que é ruim. Embora os presentes estejam identificados é difícil identificar as vozes. Em relação a Kennedy e a Lincoln Gordon, no entanto, não restam dúvidas.
Na discussão sobre o Brasil, no dia 7 de outubro de 1963, Lincoln Gordon abriu a conversa com uma introdução sobre a conjuntura brasileira: a crise iniciada com a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, se acentuara. Além do cenário econômico, abordou-se o nome dos possíveis sucessores de João Goulart, vice de Jânio que havia assumido a Presidência em setembro em clima de grande turbulência devido às suas ligações com o sindicalismo e a esquerda.
Após o embaixador falar sobre eventuais parcerias culturais entre os dois países, Kennedy o interrompeu. “Temos alguma decisão imediata para pressioná-lo?”, perguntou, referindo-se a João Goulart. “O que devemos fazer imediatamente no campo político, nada?”, prosseguiu. Gordon revelou haver dois planos: “Goulart abandona a imagem [de esquerdista] e resolve pacificamente. Ou talvez não tão pacífico: ele pode ser tirado involuntariamente”. Antes de concluir, o diplomata indagou: “Vamos suspender relações diplomáticas, econômicas, ajuda, todas essas coisas? Ou vamos encontrar uma maneira de fazer o que todo mundo faz?”.
Desde que os guerrilheiros barbudos de Sierra Maestra haviam tomado o poder em Cuba, em 1o de janeiro de 1959, os Estados Unidos intensificaram as ações contra governos comunistas ou simpatizantes da esquerda. A prática nortearia a política externa americana por décadas, sobretudo em relação aos países da América Latina. Era o mundo bipolar da Guerra Fria.
Exatamente um ano antes da reunião na qual se falou da possibilidade de uma ação militar no Brasil, Kennedy vivera o período mais tenso de seu governo, quando protagonizou com Nikita Kruschev, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética desde 1953, e Fidel Castro, líder da Revolução Cubana, a crise dos mísseis, na esteira da fracassada invasão da baía dos Porcos, em Cuba. O plano da CIA de invadir a ilha havia sido uma das várias tentativas da Casa Branca de tirar Castro do poder.
No Brasil, o cenário se deteriorara com a ascensão de João Goulart. Tolerante com indisciplinas no seio militar, Jango governava encurralado. O governo transparecia sua personalidade indecisa. Além das dificuldades políticas, a economia patinava. A alta da inflação em 1963 fecharia em 78%.
A instabilidade afetava os interesses americanos no Brasil — a empresa energética Amforp, no Rio Grande do Sul, fora reestatizada por Leonel Brizola, governador do estado e cunhado de Jango — e o próprio presidente brasileiro defendia bandeiras que assustavam os Estados Unidos. No mesmo 7 de outubro de 1963 em que a cúpula do governo americano se reunia em Washington para discutir a crise brasileira, no Rio de Janeiro o governo João Goulart descartava uma medida apresentada pelo próprio presidente brasileiro ao Congresso, três dias antes, numa de suas últimas cartadas pela estabilidade: o estado de sítio. Isolado, Jango desistira da ideia após deixar o país em suspenso por três dias. A situação só piorou após o episódio.
Para Jango, contudo, não havia motivos para desconfiar de Kennedy. Julgava-o um aliado. No início daquele ano, Brasília acertara com Washington um empréstimo avaliado em US$ 398 milhões — dos quais o governo brasileiro só receberia um quinto do valor. Jango e sua mulher, Maria Thereza, haviam sido recebidos por John e Jacqueline Kennedy na Casa Branca, talvez a mais fotogênica das visitas brasileiras à capital americana, sobretudo pela beleza das primeiras-damas. O último encontro entre Kennedy e Goulart, que assumiram as respectivas presidências no mesmo ano (1961), seria em Roma, em julho de 1963. O socorro econômico, mais uma vez, estava na pauta.
Quatro meses depois da reunião na Casa Branca, Kennedy seria assassinado, em 22 de novembro de 1963. Nove meses mais tarde, Jango seguiria para o exílio no Uruguai, em abril de 1964.
Ao ouvir de Lincoln Gordon as alternativas do que fazer no Brasil, John Kennedy lhe respondeu com uma pergunta: “Você vê a situação indo para onde deveria, acha aconselhável que façamos uma intervenção militar?”. Gordon explicou que eles estavam trabalhando com o cenário de intervenção, caso Jango desse uma guinada à esquerda, influenciado pelo que chamou de “velhos amigos” — um deles, Brizola.
O plano, segundo o diplomata, fora discutido em Washington, no Rio de Janeiro e também no Panamá, onde os Estados Unidos mantinham o comando de suas forças militares para as Américas Central e do Sul. Mas Gordon alertou que, para tomar a decisão de intervir militarmente, a Casa Branca deveria esperar por iniciativas mais claras de que o governo brasileiro realmente virava a proa para um modelo “fidelista”. Comentou ter conversado com o general Andrew O’Meara, do comando do Panamá, que o avisara sobre um possível contingente para uma ação no Brasil com “seis divisões e 90 navios”.
Nascido em Nova York em 1913, doutor em economia por Harvard, Lincoln Gordon fez parte de uma geração americana bem-nascida e intelectualizada, que galgou postos no Estado após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Servira na década de 1950 na embaixada em Londres e, no mesmo mês da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, assumiu o posto de embaixador no Brasil. Desde que chegara ao país, colaborara com a oposição e setores das Forças Armadas que conspiravam pela queda de João Goulart.
Em agosto de 1963, em telegrama encaminhado ao Departamento de Estado, Gordon afirmara que “é quase certo que Goulart fará tudo para instituir alguma forma de regime autoritário”. Em outro trecho, ele especula sobre a saúde do presidente: “Se Deus é realmente brasileiro, o problema cardíaco de Goulart, de 1962, brevemente se tornará agudo”.
O diplomata sempre negou ter participado da trama do golpe, mas seria desmentido em 1976 pela divulgação, pelo jornalista Marcos Sá Correa, do Jornal do Brasil, do que ficou conhecido como Operação Brother Sam. Até sua morte, em 2009, negou também que os Estados Unidos tenham cogitado uma ação militar que envolvesse o uso de tropas no país.
Todos os presentes na reunião de outubro de 1963 tinham poder e experiência em ações americanas no exterior.
Dean Rusk seria o segundo secretário de Estado mais longevo da política americana.
Uma das vozes mais respeitadas nos anos Kennedy, W. Averell Harriman, um milionário liberal, ex-embaixador na Inglaterra e na União Soviética durante a Segunda Guerra, ex-governador de Nova York, era o número três do Departamento de Estado.
Robert McNamara, ex-presidente da Ford e secretário de Defesa, teve papel crucial no desenrolar da Guerra do Vietnã (décadas depois, ele pediria desculpas publicamente pelo conflito). Ele também estava lá.
E havia ainda Richard Helms, sócio-fundador e diretor da CIA.
A maior ausência, segundo os registros da reunião, foi a do procurador-geral Robert Kennedy, irmão e braço direito do presidente.
Enquanto em Washington o governo discutia o futuro de um país na América Latina e de outro na Ásia, no Texas um ex-fuzileiro naval de nome Lee Harvey Oswald tocava um plano pessoal que mudaria a história americana. Após retornar de uma rápida e misteriosa viagem pelo México, Oswald encontrara trabalho num depósito de livros em Dallas. Dali, ele mataria a tiros o presidente John Kennedy.
No golpe de 1964, a intervenção militar americana acabou sendo desnecessária. Acertou Lincoln Gordon, que previra na reunião de outubro de 1963 o desfecho da crise brasileira: o golpe poderia ser desencadeado sobretudo por indisciplina e divisões nas Forças Armadas. A perda de apoio do governo Jango, sua indecisão e a traição de alguns homens de sua confiança contribuíram para a sua deposição. Sem tiros, intervenção ou guerra civil, o golpe foi encabeçado pelas Forças Armadas com o apoio de setores da sociedade civil. Triunfou em menos de 48 horas.
Mas um Plano de Contingência preparado a partir da reunião de outubro estava pronto desde o dia 11 de dezembro de 1963. Quando a sedição militar começou, no dia 31 de março do ano seguinte, ele foi posto em prática, resultando na Operação Brother Sam.
No momento em que as tropas rebeladas do general Olympio Mourão Filho marchavam de Juiz de Fora (MG) para o Rio de Janeiro, estava à disposição dos golpistas um contingente com porta-aviões, seis contratorpedeiros, um porta-helicópteros, um posto de comando aerotransportado e quatro petroleiros com 553 mil barris de combustível. No dia 2 de abril, com o golpe recém-consumado, veio o pronto reconhecimento do novo regime pelo presidente Lyndon Johnson, vice que assumira a Casa Branca após o assassinato de Kennedy. Como é mencionado na segunda edição de A ditadura envergonhada, revista e ampliada, “Johnson apoiou o golpe e orgulhava-se disso, mas apenas seguiu a planilha de Kennedy”. O reconhecimento imediato do novo governo era a principal sugestão do Plano de Contingência proposto por Gordon.
No Vietnã, a história foi distinta. Conforme decidido na reunião de outubro de 1963, em 2 de novembro daquele ano o presidente sul-vietnamita Ngo Dinh Diem e seu irmão foram depostos e assassinados. Chefe de um governo autocrático e anticomunista sustentado pelos americanos, Diem foi vítima de mais uma interferência dos Estados Unidos no país. Começava o inferno americano no Vietnã. A guerra só terminaria em 1975, com uma derrota histórica do Exército dos Estados Unidos e a reunificação do Vietnã.
No dia 20 de outubro de 1963, cinco dias antes do golpe no Sudeste Asiático, duas reuniões revelariam a complexidade e as anomalias do poder americano daqueles tempos. Numa delas, em Paris, um agente da CIA encontrava-se com o cubano Rolando Cubela. Cubela fornecera uma caneta esferográfica Paper Mate envenenada que deveria ser usada para assassinar Fidel Castro. Era uma das centenas de tentativas de matar o Comandante. Noutra reunião, na Casa Branca, cujo conteúdo seria divulgado décadas depois pela organização National Security Archive, Robert Kennedy alertara o irmão presidente sobre o golpe iminente no Vietnã. “É diferente de um golpe no Iraque ou na América Latina. Nós estamos intimamente envolvidos nisso”, disse. De fato, a ação no Vietnã seria muito diferente do modus operandi de um típico golpe latino-americano.
A indagação de Kennedy se deu no primeiro dos dois dias seguidos de reuniões de cúpula do governo americano, em 7 e 8 de outubro de 1963, quando se discutiu a situação do Brasil e do Vietnã (aos 20min).
No primeiro encontro, Kennedy, Lincoln Gordon, embaixador americano no Brasil, e outras autoridades debateram o contexto brasileiro. Os americanos temiam que, além do caos institucional e do descontrole econômico no país, as propostas de reformas de base defendidas por Jango fossem implementadas. A reunião deixava claro que os Estados Unidos estavam preparados para uma ação militar, caso o governo Goulart aprofundasse a plataforma de esquerda, “fidelista”, e fosse colocado diante de uma sedição das Forças Armadas.
No segundo encontro, o assunto discutido era outro golpe de Estado, este prestes a ocorrer, que moldaria a política americana na década seguinte: o governo decidira apoiar a ação da Central Intelligence Agency (CIA), que se envolvera com o golpe de generais que depuseram e mataram o presidente sul-vietnamita Ngo Dinh Diem. Era o início do atoleiro americano no Vietnã.
A gravação desses encontros foi posta na internet pela Biblioteca Kennedy há pelo menos um ano e encontrada durante uma pesquisa em ferramenta de busca. Procurada na semana passada, a biblioteca não informou a data em que a gravação foi liberada e disponibilizada na rede. O áudio integra um conjunto de gravações clandestinas efetuadas pelo próprio Kennedy de suas reuniões desde 1962, quando, por coincidência, deu início à série gravando um encontro com Gordon. Nesse dia, o diplomata já afirmava a Kennedy que o golpe militar era uma opção para se resolver a crise política brasileira.
Os grampos do presidente americano foram desmantelados logo após o seu assassinato, ainda em 1963, com a ajuda da fiel secretária dele, Evelyn Lincoln. A existência dessas gravações era conhecida por poucos. Só em 1975 a família Kennedy liberaria 260 horas de gravações. Em 1997, descobriram-se mais cinco horas de conversas gravadas durante a crise com Cuba. Finalmente, em 2001, foi lançado o livro The presidential recordings, organizado por Timothy Naftali – em três volumes estão todas as conversas de julho de 1962, início do grampo, a 21 de outubro do mesmo ano, quando a crise com Cuba esfriou.
A Biblioteca John Kennedy não fez transcrição oficial da reunião em que se discutiu a situação brasileira e a vietnamita, o que obriga os pesquisadores a trabalhar com a versão do áudio existente, que é ruim. Embora os presentes estejam identificados é difícil identificar as vozes. Em relação a Kennedy e a Lincoln Gordon, no entanto, não restam dúvidas.
Na discussão sobre o Brasil, no dia 7 de outubro de 1963, Lincoln Gordon abriu a conversa com uma introdução sobre a conjuntura brasileira: a crise iniciada com a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 25 de agosto de 1961, se acentuara. Além do cenário econômico, abordou-se o nome dos possíveis sucessores de João Goulart, vice de Jânio que havia assumido a Presidência em setembro em clima de grande turbulência devido às suas ligações com o sindicalismo e a esquerda.
Após o embaixador falar sobre eventuais parcerias culturais entre os dois países, Kennedy o interrompeu. “Temos alguma decisão imediata para pressioná-lo?”, perguntou, referindo-se a João Goulart. “O que devemos fazer imediatamente no campo político, nada?”, prosseguiu. Gordon revelou haver dois planos: “Goulart abandona a imagem [de esquerdista] e resolve pacificamente. Ou talvez não tão pacífico: ele pode ser tirado involuntariamente”. Antes de concluir, o diplomata indagou: “Vamos suspender relações diplomáticas, econômicas, ajuda, todas essas coisas? Ou vamos encontrar uma maneira de fazer o que todo mundo faz?”.
Desde que os guerrilheiros barbudos de Sierra Maestra haviam tomado o poder em Cuba, em 1o de janeiro de 1959, os Estados Unidos intensificaram as ações contra governos comunistas ou simpatizantes da esquerda. A prática nortearia a política externa americana por décadas, sobretudo em relação aos países da América Latina. Era o mundo bipolar da Guerra Fria.
Exatamente um ano antes da reunião na qual se falou da possibilidade de uma ação militar no Brasil, Kennedy vivera o período mais tenso de seu governo, quando protagonizou com Nikita Kruschev, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética desde 1953, e Fidel Castro, líder da Revolução Cubana, a crise dos mísseis, na esteira da fracassada invasão da baía dos Porcos, em Cuba. O plano da CIA de invadir a ilha havia sido uma das várias tentativas da Casa Branca de tirar Castro do poder.
No Brasil, o cenário se deteriorara com a ascensão de João Goulart. Tolerante com indisciplinas no seio militar, Jango governava encurralado. O governo transparecia sua personalidade indecisa. Além das dificuldades políticas, a economia patinava. A alta da inflação em 1963 fecharia em 78%.
A instabilidade afetava os interesses americanos no Brasil — a empresa energética Amforp, no Rio Grande do Sul, fora reestatizada por Leonel Brizola, governador do estado e cunhado de Jango — e o próprio presidente brasileiro defendia bandeiras que assustavam os Estados Unidos. No mesmo 7 de outubro de 1963 em que a cúpula do governo americano se reunia em Washington para discutir a crise brasileira, no Rio de Janeiro o governo João Goulart descartava uma medida apresentada pelo próprio presidente brasileiro ao Congresso, três dias antes, numa de suas últimas cartadas pela estabilidade: o estado de sítio. Isolado, Jango desistira da ideia após deixar o país em suspenso por três dias. A situação só piorou após o episódio.
Para Jango, contudo, não havia motivos para desconfiar de Kennedy. Julgava-o um aliado. No início daquele ano, Brasília acertara com Washington um empréstimo avaliado em US$ 398 milhões — dos quais o governo brasileiro só receberia um quinto do valor. Jango e sua mulher, Maria Thereza, haviam sido recebidos por John e Jacqueline Kennedy na Casa Branca, talvez a mais fotogênica das visitas brasileiras à capital americana, sobretudo pela beleza das primeiras-damas. O último encontro entre Kennedy e Goulart, que assumiram as respectivas presidências no mesmo ano (1961), seria em Roma, em julho de 1963. O socorro econômico, mais uma vez, estava na pauta.
Quatro meses depois da reunião na Casa Branca, Kennedy seria assassinado, em 22 de novembro de 1963. Nove meses mais tarde, Jango seguiria para o exílio no Uruguai, em abril de 1964.
Ao ouvir de Lincoln Gordon as alternativas do que fazer no Brasil, John Kennedy lhe respondeu com uma pergunta: “Você vê a situação indo para onde deveria, acha aconselhável que façamos uma intervenção militar?”. Gordon explicou que eles estavam trabalhando com o cenário de intervenção, caso Jango desse uma guinada à esquerda, influenciado pelo que chamou de “velhos amigos” — um deles, Brizola.
O plano, segundo o diplomata, fora discutido em Washington, no Rio de Janeiro e também no Panamá, onde os Estados Unidos mantinham o comando de suas forças militares para as Américas Central e do Sul. Mas Gordon alertou que, para tomar a decisão de intervir militarmente, a Casa Branca deveria esperar por iniciativas mais claras de que o governo brasileiro realmente virava a proa para um modelo “fidelista”. Comentou ter conversado com o general Andrew O’Meara, do comando do Panamá, que o avisara sobre um possível contingente para uma ação no Brasil com “seis divisões e 90 navios”.
Nascido em Nova York em 1913, doutor em economia por Harvard, Lincoln Gordon fez parte de uma geração americana bem-nascida e intelectualizada, que galgou postos no Estado após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Servira na década de 1950 na embaixada em Londres e, no mesmo mês da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, assumiu o posto de embaixador no Brasil. Desde que chegara ao país, colaborara com a oposição e setores das Forças Armadas que conspiravam pela queda de João Goulart.
Em agosto de 1963, em telegrama encaminhado ao Departamento de Estado, Gordon afirmara que “é quase certo que Goulart fará tudo para instituir alguma forma de regime autoritário”. Em outro trecho, ele especula sobre a saúde do presidente: “Se Deus é realmente brasileiro, o problema cardíaco de Goulart, de 1962, brevemente se tornará agudo”.
O diplomata sempre negou ter participado da trama do golpe, mas seria desmentido em 1976 pela divulgação, pelo jornalista Marcos Sá Correa, do Jornal do Brasil, do que ficou conhecido como Operação Brother Sam. Até sua morte, em 2009, negou também que os Estados Unidos tenham cogitado uma ação militar que envolvesse o uso de tropas no país.
Todos os presentes na reunião de outubro de 1963 tinham poder e experiência em ações americanas no exterior.
Dean Rusk seria o segundo secretário de Estado mais longevo da política americana.
Uma das vozes mais respeitadas nos anos Kennedy, W. Averell Harriman, um milionário liberal, ex-embaixador na Inglaterra e na União Soviética durante a Segunda Guerra, ex-governador de Nova York, era o número três do Departamento de Estado.
Robert McNamara, ex-presidente da Ford e secretário de Defesa, teve papel crucial no desenrolar da Guerra do Vietnã (décadas depois, ele pediria desculpas publicamente pelo conflito). Ele também estava lá.
E havia ainda Richard Helms, sócio-fundador e diretor da CIA.
A maior ausência, segundo os registros da reunião, foi a do procurador-geral Robert Kennedy, irmão e braço direito do presidente.
Enquanto em Washington o governo discutia o futuro de um país na América Latina e de outro na Ásia, no Texas um ex-fuzileiro naval de nome Lee Harvey Oswald tocava um plano pessoal que mudaria a história americana. Após retornar de uma rápida e misteriosa viagem pelo México, Oswald encontrara trabalho num depósito de livros em Dallas. Dali, ele mataria a tiros o presidente John Kennedy.
No golpe de 1964, a intervenção militar americana acabou sendo desnecessária. Acertou Lincoln Gordon, que previra na reunião de outubro de 1963 o desfecho da crise brasileira: o golpe poderia ser desencadeado sobretudo por indisciplina e divisões nas Forças Armadas. A perda de apoio do governo Jango, sua indecisão e a traição de alguns homens de sua confiança contribuíram para a sua deposição. Sem tiros, intervenção ou guerra civil, o golpe foi encabeçado pelas Forças Armadas com o apoio de setores da sociedade civil. Triunfou em menos de 48 horas.
Mas um Plano de Contingência preparado a partir da reunião de outubro estava pronto desde o dia 11 de dezembro de 1963. Quando a sedição militar começou, no dia 31 de março do ano seguinte, ele foi posto em prática, resultando na Operação Brother Sam.
No momento em que as tropas rebeladas do general Olympio Mourão Filho marchavam de Juiz de Fora (MG) para o Rio de Janeiro, estava à disposição dos golpistas um contingente com porta-aviões, seis contratorpedeiros, um porta-helicópteros, um posto de comando aerotransportado e quatro petroleiros com 553 mil barris de combustível. No dia 2 de abril, com o golpe recém-consumado, veio o pronto reconhecimento do novo regime pelo presidente Lyndon Johnson, vice que assumira a Casa Branca após o assassinato de Kennedy. Como é mencionado na segunda edição de A ditadura envergonhada, revista e ampliada, “Johnson apoiou o golpe e orgulhava-se disso, mas apenas seguiu a planilha de Kennedy”. O reconhecimento imediato do novo governo era a principal sugestão do Plano de Contingência proposto por Gordon.
No Vietnã, a história foi distinta. Conforme decidido na reunião de outubro de 1963, em 2 de novembro daquele ano o presidente sul-vietnamita Ngo Dinh Diem e seu irmão foram depostos e assassinados. Chefe de um governo autocrático e anticomunista sustentado pelos americanos, Diem foi vítima de mais uma interferência dos Estados Unidos no país. Começava o inferno americano no Vietnã. A guerra só terminaria em 1975, com uma derrota histórica do Exército dos Estados Unidos e a reunificação do Vietnã.
No dia 20 de outubro de 1963, cinco dias antes do golpe no Sudeste Asiático, duas reuniões revelariam a complexidade e as anomalias do poder americano daqueles tempos. Numa delas, em Paris, um agente da CIA encontrava-se com o cubano Rolando Cubela. Cubela fornecera uma caneta esferográfica Paper Mate envenenada que deveria ser usada para assassinar Fidel Castro. Era uma das centenas de tentativas de matar o Comandante. Noutra reunião, na Casa Branca, cujo conteúdo seria divulgado décadas depois pela organização National Security Archive, Robert Kennedy alertara o irmão presidente sobre o golpe iminente no Vietnã. “É diferente de um golpe no Iraque ou na América Latina. Nós estamos intimamente envolvidos nisso”, disse. De fato, a ação no Vietnã seria muito diferente do modus operandi de um típico golpe latino-americano.
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