Os novos “vândalos” do Brasil
O rolezinho, a novidade deste Natal, mostra que,
quando a juventude pobre e negra das periferias de São Paulo ocupa os shoppings
anunciando que quer fazer parte da festa do consumo, a resposta é a de sempre:
criminalização. Mas o que estes jovens estão, de fato, “roubando” da classe
média brasileira?
O Natal de 2013 ficará marcado como aquele em que o
Brasil tratou garotos pobres, a maioria deles negros, como bandidos, por terem
ousado se divertir nos shoppings onde a classe média faz as compras de fim de
ano. Pelas redes sociais, centenas, às vezes milhares de jovens, combinavam o
que chamam de “rolezinho”, em shopping próximos de suas comunidades, para
“zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras” ou “tumultuar, pegar geral, se
divertir, sem roubos”. No sábado, 14, dezenas entraram no Shopping
Internacional de Guarulhos, cantando refrões de funk da ostentação. Não
roubaram, não destruíram, não portavam drogas, mas, mesmo assim, 23 deles foram
levados até a delegacia, sem que nada justificasse a detenção. Neste domingo,
22, no Shopping Interlagos, garotos foram revistados na chegada por um forte
esquema policial: segundo a imprensa, uma base móvel e quatro camburões para a
revista, outras quatro unidades da Polícia Militar, uma do GOE (Grupo de
Operações Especiais) e cinco carros de segurança particular para montar guarda.
Vários jovens foram “convidados” a se retirar do prédio, por exibirem uma
aparência de funkeiros, como dois irmãos que empurravam o pai, amputado, numa cadeira
de rodas. De novo, nenhum furto foi registrado. No sábado, 21, a polícia,
chamada pela administração do Shopping Campo Limpo, não constatou nenhum
“tumulto”, mas viaturas da Força Tática e motos da Rocam (Ronda Ostensiva com
Apoio de Motocicletas) permaneceram no estacionamento para inibir o rolezinho e
policiais entraram no shopping com armas de balas de borracha e bombas de gás.
Se não há crime, por que a
juventude pobre e negra das periferias da Grande São Paulo está sendo
criminalizada?
Primeiro, por causa do passo para dentro. Os
shoppings foram construídos para mantê-los do lado de fora e, de repente, eles
ousaram superar a margem e entrar. E reivindicando algo transgressor para
jovens negros e pobres, no imaginário nacional: divertir-se fora dos limites do
gueto. E desejar objetos de consumo. Não geladeiras e TVs de tela plana,
símbolos da chamada classe C ou “nova classe média”, parcela da população que
ascendeu com a ampliação de renda no governo Lula, mas marcas de luxo, as
grandes grifes internacionais, aqueles que se pretendem exclusivas para uma
elite, em geral branca.
Antes, em 7 de dezembro, cerca de 6 mil jovens
haviam ocupado o estacionamento do Shopping Metrô Itaquera, e também foram
reprimidos. Vários rolezinhos foram marcados pelas redes sociais em diferentes
shoppings da região metropolitana de São Paulo até o final de janeiro, mas, com
medo da repressão, muitos têm sido cancelados. Seus organizadores, jovens que
trabalham em serviços como o de office-boy e ajudante geral, temem perder o
emprego ao serem detidos pela polícia por estarem onde supostamente não
deveriam estar – numa lei não escrita, mas sempre cumprida no Brasil.
Seguranças dos shoppings foram orientados a monitorar qualquer jovem “suspeito”
que esteja diante de uma vitrine, mesmo que sozinho, desejando óculos da Oakley
ou tênis Mizuno, dois dos ícones dos funkeiros da ostentação. Às vésperas do
Natal, o Brasil mostra a face deformada do seu racismo. E precisa encará-la,
porque racismo, sim, é crime.
“Eita porra, que cheiro de maconha” foi o refrão
cantado pelos jovens ao entrarem no Shopping Internacional de Guarulhos. O funk
é de MC Daleste, que afirma no nome artístico a região onde nasceu e se criou,
a zona leste, a mais pobre de São Paulo, aquela que todo o verão naufraga com
as chuvas, por obras que os sucessivos governos sempre adiam, esmagando sonhos,
soterrando casas, matando adultos e crianças. Daleste morreu assassinado em
julho com um tiro no peito durante um show em Campinas – e assassinato é a
primeira causa de morte dos jovens negros e pobres no Brasil, como os que
ocuparam o Shopping Internacional de Guarulhos.
A polícia reprimiu, os lojistas fecharam as lojas,
a clientela correu. Uma das frequentadores do shopping disse a frase-símbolo à
repórter Laura Capriglione, na Folha de S. Paulo: “Tem de proibir este tipo de
maloqueiro de entrar num lugar como este”. Nos dias que se seguiram, em
diferentes sites de imprensa, leitores assim definiram os “rolezeiros” (veja
entrevista abaixo): “maloqueiros”, “bandidos”, “prostitutas” e “negros”. Negros
emerge aqui como palavra de ofensa.
As novelas já vendiam uma vida de
luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam ao mundo de
riqueza. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que aparecem neste
mundo.”
O funk da ostentação, surgido na Baixada Santista e
Região Metropolitana de São Paulo nos últimos anos, evoca o consumo, o luxo, o
dinheiro e o prazer que tudo isso dá. Em seus clipes, os MCs aparecem com
correntes e anéis de ouro, vestidos com roupas de grife, em carros caros,
cercado por mulheres com muita bunda e pouca roupa. (Para conhecer o funk
da ostentação, assista ao documentárioaqui). Diferentemente do núcleo
duro do hip hop paulista dos ano 80 e 90, que negava o sistema, e também do
movimento de literatura periférica e marginal que, no início dos anos 2000,
defendia que, se é para consumir, que se compre as marcas produzidas pela
periferia, para a periferia, o funk da ostentação coloca os jovens, ainda que
para a maioria só pelo imaginário, em cenários até então reservados para a
juventude branca das classes média e alta. Esta, talvez, seja a sua
transgressão. Em seus clipes, os MCs têm vida de rico, com todos os signos dos
ricos. Graças ao sucesso de seu funk nas comunidades, muitos MCs enriqueceram
de fato e tiveram acesso ao mundo que celebravam.
Esta exaltação do luxo e do consumo, interpretada
como adesão ao sistema, tornou o funk da ostentação desconfortável para uma
parcela dos intelectuais brasileiros e mesmo para parte das lideranças
culturais das periferias de São Paulo. Agora, os rolezinhos – e a repressão que
se seguiu a eles – deram a esta vertente do funk uma marca de insurgência,
celebrada nos últimos dias por vozes da esquerda. Ao ocupar os shoppings, a
juventude pobre e negra das periferias não estava apenas se apropriando dos
valores simbólicos, como já fazia pelas letras do funk da ostentação, mas
também dos espaços físicos, o que marca uma diferença. E, para alguns setores
da sociedade, adiciona um conteúdo perigoso àquele que já foi chamado de “funk
do bem”.
A resposta violenta da administração dos shoppings,
das autoridades públicas, da clientela e de parte da mídia demonstra que esses
atores decodificaram a entrada da juventude das periferias nos shoppings como
uma violência. Mas a violência era justamente o fato de não estarem lá para
roubar, o único lugar em que se acostumaram a enxergar jovens negros e pobres.
Então, como encaixá-los, em que lugar colocá-los? Preferiram concluir que havia
a intenção de furtar e destruir, o que era mais fácil de aceitar do que admitir
que apenas queriam se divertir nos mesmos lugares da classe média, desejando os
mesmo objetos de consumo que ela. Levaram uma parte dos rolezeiros para a
delegacia. Ainda que tivessem de soltá-los logo depois, porque nada de fato
havia para mantê-los ali, o ato já estigmatizou-os e assinalará suas vidas,
como historicamente se fez com os negros e pobres no Brasil.
Jefferson Luís, 20 anos, organizador do rolezinho
do Shopping Internacional de Guarulhos, foi detido, é alvo de inquérito
policial, sua mãe chorou e ele acabou cancelando outro rolezinho já marcado por
medo de ser ainda mais massacrado. Ajudante geral de uma empresa, economizou um
mês de salário para comprar a corrente dourada que ostenta no pescoço.
Jefferson disse ao jornal O Globo: “Não
seria um protesto, seria uma resposta à opressão. Não dá para ficar em casa
trancado”.
Por esta subversão, ele não será perdoado. Os
jovens negros e pobres das periferias de São Paulo, em vez de se contentarem em
trabalhar na construção civil e em serviços subalternos das empresas de segunda
a sexta, e ficar trancados em casas sem saneamento no fim de semana, querem
também se divertir. Zoar, como dizem. A
classe média até aceita que queiram pão, que queiram geladeira, sente-se mais
incomodada quando lotam os aeroportos, mas se divertir – e nos shoppings?
Mais uma frase de Jefferson Luiz: “Se eu tivesse um quarto só pra mim hoje já
seria uma ostentação”. Ele divide um cômodo na periferia de Guarulhos com oito
pessoas.
Neste Natal, os funkeiros da ostentação parecem ter
virado os novos “vândalos”, como são chamados todos os manifestantes que, nos
protestos, não se comportam dentro da etiqueta estabelecida pelas autoridades
instituídas e por parte da mídia. Nas primeiras notícias da imprensa, o
rolezinho do Shopping Internacional de Guarulhos foi tachado de “arrastão”. Mas
não havia arrastão nenhum. O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira faz uma
provocação precisa: “Se fosse um grupo numeroso de jovens brancos de classe
média, como aconteceu várias vezes, seria interpretado como um flash
mob?”.
A ideia da imaginação como uma
força criativa apresenta-se fortemente no funk ostentação.”
Por que
os administradores dos shoppings, polícia, parte da mídia e clientela só
conseguem enquadrar um grupo de jovens negros e pobres dentro de um shopping
como “arrastão”? Há várias respostas possíveis. Pereira propõe uma bastante
aguda: “Será que a classe média entende que os jovens estão ‘roubando’ o
direito exclusivo de eles consumirem?”. Seria este o “roubo” imperdoável, que
colocou as forças de repressão na porta dos shoppings, para impedir a entrada
de garotos desarmados que queriam zoar, dar uns beijos e cobiçar seus objetos
de desejo nas vitrines?
Para nos ajudar a pensar sobre os significados do
rolezinho e do funk da ostentação, entrevisto Alexandre Barbosa Pereira nesta
coluna. Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ele dedica-se
a pesquisar as manifestações culturais das periferias paulistas. Em seu
mestrado, percorreu o mundo da pichação. No doutorado, mergulhou nas escolas
públicas para compreender o que é “zoar”. Desde 2012, pesquisa o funk da
ostentação. Mesmo que os rolezinhos, pela força da repressão, se encerrem neste
Natal, há muito que precisamos compreender sobre o que dizem seus protagonistas
– e sobre o que a reação violenta contra eles diz da sociedade brasileira
XX- O
rolezinho aparece ligado ao funk da ostentação. Em que medida há, de fato, essa
ligação?
Alexandre Barbosa Pereira – O funk ostentação
é uma releitura paulista do funk carioca, feita a partir da Baixada Santista e
da Região Metropolitana de São Paulo, na qual as letras passam a ter a seguinte
temática: dinheiro, grifes, carros, bebidas e mulheres. Não se fala mais
diretamente de crime, drogas ou sexo. Os funkeiros dessa vertente começaram a
produzir videoclipes inspirados na estética dos videocliples do gangsta rap
estadunidense. Mas o mais curioso desse movimento é a virada que os jovens
fazem ao mudar a pauta que, até então, era principalmente a criminalidade para
o consumo. As músicas deixam de falar de crime para falar de produtos que eles
querem consumir. Assim, ao invés de cantarem: “Rouba moto, rouba carro, bandido
não anda à pé” (Bonde Sinistro), os funkeiros da vertente ostentação cantam:
“Vida é ter um Hyundai e um hornet, dez mil para gastar, rolex, juliet.
Melhores kits, vários investimentos. Ah como é bom ser o top do momento” (MC
Danado). Deste modo, os MCs começaram a ter mais espaços para cantar em casas
noturnas e passaram a produzir videoclipes cada vez mais elaborados, com mais
de 20 milhões de acessos no YouTube, o que levou a um sucesso às margens da
mídia tradicional. Alguns MCs chegaram a alcançar grande repercussão entre um
segmento do público jovem, sem nunca ter aparecido na televisão. Vi meninas
chorando por MCs em bailes, mesmo antes de o funk ostentação alcançar o
destaque que conseguiu na grande mídia. Surgiram empresas especializadas na
produção de clipes no estilo ostentação, como a Kondzilla e a Funk TV,
claramente inspirados no gangsta rap, em que os jovens aparecem em carrões e
motos, exibindo-se com roupas, dinheiro e mulheres. Uma reflexão interessante a
se fazer é como a mídia tradicional, que antes execrava o chamado funk
proibidão, que falava de crime, drogas e sexo abertamente, agora começa a
elogiar o funk ostentação, denominando-o até como “funk do bem” e ressaltando a
trajetória econômica e social ascendente dos MCs.
Pergunta. Fazendo um parêntese aqui, antes de
chegar ao rolezinho, qual é o caminho para um jovem pobre ter acesso ao consumo
de luxo, segundo o olhar do funk da ostentação? Esta virada que você mencionou…
Resposta. Primeiro que esse bem de luxo não é
tão de luxo assim, afinal uma garrafa de uísque a 60 ou 80 Reais não é nenhum
absurdo. É sempre possível comprar uma réplica daqueles óculos escuros que
custam mais de mil reais. Nas casas noturnas de funk que observei, este era o
preço. Pensemos num grupo de pelo menos quatro amigos dividindo o valor da
compra. Não sai tão caro brincar de ostentar. Agora, tem os carros. Estes sim
estão fora do alcance da maioria desses jovens. Mas aí há uma explicação
interessante, que Montanha, um produtor e diretor de videoclipes da Funk TV, em
Cidade Tiradentes, sabiamente me deu. Ele me disse que as novelas já vendiam
uma vida de luxo há muito tempo, só que nelas os ricos eram os que pertenciam
ao mundo de luxo. Nos videoclipes de funk ostentação, são os pobres que
aparecem como um mundo de “riqueza” ou de “luxo”, com carros, mansões, roupas
de marcas mais caras. Os jovens agora poderiam, segundo afirmou Montanha,
ver-se como parte de um mundo de prestígio, daí a grande identificação. O crime
pode ser um caminho para acessar esse mundo de luxo ou o que esses jovens
entendem por um mundo de luxo, mas não é único. Esta é a lição que muitos MCs
de funk têm tentando passar em suas falas na grande mídia. Eles de certa forma
mostram um outro caminho, que, aliás, sempre esteve presente para esses jovens
da periferia: tornar-se famoso pela música ou pelo futebol. Aliás, esses são
caminhos que aparecem como os mais possíveis para os jovens negros e pobres das
periferias do país imaginarem um futuro de sucesso. Num mundo em que há uma
forte divisão entre trabalho intelectual e manual, com a extrema valorização do
primeiro, o uso do corpo em formas lúdicas como meio de ganhar dinheiro
mostra-se como opção para uma transformação da vida. “Crime, futebol, música,
caralho, eu também não consegui fugir disso aí”, esse é o Negro Drama cantado
pelos Racionais MC’s. Os MCs de funk ostentação estão tentando dizer que é
possível construir uma vida de sucesso pela música. E o que era ficção, os videoclipes
com carros importados emprestados ou alugados, com dinheiro cenográfico jogado
para o ar, começa a tornar-se realidade. Muitos deles começam a ganhar uma
quantidade razoável de dinheiro com os shows. Acho que a ideia da imaginação
como uma força criativa apresenta-se fortemente no funk ostentação.
Será que a classe média entende
que os jovens estão ‘roubando’ o direito exclusivo de eles consumirem? Direito
que, por sua vez, vinha sendo roubado desses jovens pobres há muito tempo.”
Por outro lado, é preciso destacar que
masculinidades pautadas pelo desejo de possuir um automóvel ou uma motocicleta
não foram construídas pelo funk ostentação. Já existia há um tempo. Para os
meninos da periferia, possuir um bom carro, bonito e potente, é uma das metas principais
de vida. A posse do carro é, no imaginário desses jovens, mas também da
população em geral, um indicativo de sucesso econômico e social, garantindo,
consequentemente, sucesso com as mulheres.
Neste caldo cultural, o consumo é cada vez mais
exaltado como espaço de afirmação e de reconhecimento para os jovens. É,
inclusive, bastante complexa a forma como se dá a relação entre criminalidade e
consumo no funk. Na virada que produziram, parece que há o recado de que essas
duas ações sociais podem constituir dois lados de uma mesma moeda. Eles não
deixam de falar do crime. Acabam citando-o indiretamente, como nas músicas do
MC Rodofilho, nas quais ele celebra: “Ai meu deus, como é bom ser vida loka!”.
O importante é entender como o crime e o consumo são pautas constantes nas
relações de sociabilidade dos jovens da periferia. Os mais pobres também querem
que ipads, iphones e automóveis potentes façam parte de seu mundo social. Ainda
preciso observar e refletir mais sobre isso, mas acho que tanto no caso do crime,
como no do consumo temos que atentar mais para o modo como se dão as relações
entre pessoas e coisas. Fico pensando que a busca de realização apenas pelo
consumo envolve sentimentos e posturas extremas de um egoísmo hedonista e de um
profundo desprezo pelos outros humanos. As mercadorias, ou as coisas almejadas,
de certa forma têm conformado as subjetividades contemporâneas. E nessas novas
subjetividades, pautadas pelo instantâneo e o instável, parece não haver muito
espaço para a solidariedade. Há uma nova tendência na discussão antropológica
afirmando que não podemos entender as coisas apenas como representação ou
resultado do social. Precisamos pensar também em como as coisas fazem as
pessoas e mesmo o social, como as coisas, ou as mercadorias mais desejadas
hoje, motivam tanto um consumismo desenfreado, irracional e egoísta, quanto o
ingresso de jovens na criminalidade. Sempre fico espantado quando vejo as
imagens, em outros países, das pessoas correndo desesperadas para comprar um
novo lançamento de smartphone, videogame ou tablet… Mas não só isso, tais
coisas também motivam e determinam formas de estar, pensar, relacionar-se e
sentir no mundo contemporâneo.
Penso muito nisso quando parte da classe média
critica o consumo desses jovens, dizendo que apenas eles – da classe média que,
supostamente, pagaria os impostos – têm direito a consumir, ou se relacionar
com certos produtos. Será que, desse modo, a classe média entende que os jovens
estão roubando o direito exclusivo de eles consumirem ou de se relacionarem com
esses objetos de prestígio? Direito que, por sua vez, vinha sendo roubado
desses jovens pobres há muito tempo?
Essa crítica pode vir inclusive de certa classe
média mais intelectualizada e mesmo com ideias políticas progressistas, mas que
acha que sabe o que é melhor para os pobres. Aí fazem a crítica, a partir dos
seus ipads e iphones, ao que entendem como um consumo irracional dos mais
pobres, que deveriam poupar ao invés de gastar com produtos que não seriam para
o nível econômico deles. Enfim, tem aí um jogo de perde e ganha e também de
busca de satisfações individuais que envolve o roubo do direito de alguns ao
consumo, que é preciso aprofundar para entendermos melhor essas dinâmicas
contemporâneas. Todos têm o direito a consumir o que quiserem hoje? E seria
viável, hoje, todos consumirem em um alto padrão? Que implicações ambientais
teríamos? E se não é sustentável ou viável que todos consumam em tamanha
intensidade, por que incentivamos tal consumismo? Com isso, o que quero dizer é
que não se pode pensar a relação entre crime e consumo apenas entre os pobres,
mas creio que precisamos também olhar para as classes médias e altas e para os
crimes que, historicamente, têm sido cometidos contra os mais pobres e o meio
ambiente para proteger o consumo dos ricos.
P. É neste ponto que os rolezinhos aparecem e
criam uma tensão das mais reveladoras neste Natal?
R. Os rolezinhos nos shoppings estão ligados
diretamente a esse contexto. Não sei dizer como surgiram efetivamente, mas me
parece que despontaram por essas novas associações que as redes sociais
permitem fazer, de forma que uma brincadeira possa virar algo sério. De
repente, uma convocatória feita na internet pode levar centenas de jovens a se
encontrarem num shopping, local onde podem ter acesso a esses bens cantados nas
músicas, ainda que apenas por acesso visual. Agora, o que é importante
ressaltar é que não foram os rolezinhos nem o funk ostentação que criaram essa
relação de fascinação com consumo. Esta já existia há muito tempo. Os Racionais,
há mais de dez anos, já cantavam sobre isso, com afirmações como: “Você disse
que era bom e a favela ouviu, lá também tem uísque, red bull, tênis nike e
fuzil” ou “Fartura alegra o sofredor”
É importante perceber que os
shoppings onde os rolezinhos ocorreram estão em regiões mais periféricas. Eles
não têm ido aos templos maiores do consumo de luxo na cidade.”
P. Algumas análises relacionam os rolezinhos a
uma ação afirmativa da juventude negra e pobre, a uma denúncia da opressão e a
uma reivindicação de participação, neste caso no mundo do consumo. Como você
analisaria este fenômeno tão novo?
R. Não me arriscaria a dizer que há um
movimento político muito claro. Pode indiretamente constituir-se como uma ação
afirmativa da juventude negra e pobre. Talvez a tensão que se criou com a
criminalização desses jovens, durante os rolezinhos, possa levar a algum tipo
de reflexão e ação política maior, mas é difícil prever. Em um livro
intitulado Cidadania Insurgente, (o antropólogo americano) James
Holston analisa o surgimento das periferias urbanas no Brasil, particularmente
em São Paulo, apontando a discriminação contra certas espécies de cidadãos no
Brasil. Esse autor mostra como, historicamente, as formulações de cidadania
elaboradas pelos mais pobres se deram a partir de sua ocupação dos bairros nas
periferias das grandes cidades. Noções e práticas próprias de cidadania que se
produziram, ao mesmo tempo, por meio das experiências de tornar-se
proprietário, de participar de movimentos sociais por melhorias dos bairros e
de ingressar no mercado consumidor. Primeiro se ocupou os bairros, mesmo sem
estrutura mínima. Depois, ocorreram as reivindicações pela legalização dos
terrenos ocupados. E, enfim, vieram as lutas pela chegada da energia elétrica,
saneamento básico e asfalto. Acho sempre muito interessante, em conversas com
lideranças antigas dos bairros periféricos de São Paulo, observar que elas
indicam a chegada do asfalto como o grande marco de transformação do bairro e a
integração deste ao espaço urbano.
Encaro, portanto, ações como estas, dos rolezinhos,
do ponto de vista dessa “cidadania insurgente”, referindo-se a associações de
cidadãos que reivindicam um espaço para si e, assim, se contrapõem ao grande
discurso hegemônico ou, se não se dissociam do discurso hegemônico, ao menos
provocam ruídos nele. Trata-se de uma reivindicação por cidadania, participação
política e direitos que, historicamente, foi feita na marra, pelos mais pobres,
muitas vezes nas costuras entre o legal e o ilegal, e que começou com a própria
ocupação dos bairros na periferia da cidade de São Paulo, como forma de habitar
e sobreviver no mundo urbano. Essa cidadania não necessariamente se apresenta
como resistência, mas pode também querer, em muitos casos, associar-se ao
hegemônico, produzindo dissonâncias.
O que são o funk ostentação e os rolezinhos se não
essa reivindicação dos jovens mais pobres por maior participação na vida social
mais ampla pelo consumo? Estas ações culturais parecem situar-se nessa lógica,
que não necessariamente se contrapõe ao hegemônico, na medida em que tenta se
afirmar pelo consumo, mas provoca um desconforto, um ruído extremamente
irritante para aqueles que se pautam por um discurso e uma prática de
segregação dos que consideram como seus “outros”.
P. Como definir este desconforto? O que são os
“outros” neste contexto? E que papel estes “outros” desempenham?
R. O desconforto em ver pobres ocupando um
lugar em que não deveriam estar, como o de consumidores de certos produtos que
deveriam ser mais exclusivos. É um tipo de espanto, que indaga: “Como eles, que
não têm dinheiro, querem consumir produtos que não são para a posição social e
econômica deles?”. Estes “outros” são os considerados “subalternos”. Podem ser
funkeiros, pobres e pardos da periferia, mas podem ser também as empregadas
domésticas, os motoboys, os pichadores, entre outros “outros”, que muitas vezes
são utilizados como bode expiatório das frustrações de uma parcela considerável
da classe média.
Há uma tendência de perceber os
jovens pobres a partir de três perspectivas: a do bandido, a da vítima e a do
herói.”
Os rolezinhos não são protestos contra o shopping
ou o consumo, mas afirmações de: “Queremos estar no mundo do consumo, nos
templos do consumo”. Entretanto, por serem jovens pobres de bairros
periféricos, negros e pardos em sua maioria, e que ouvem um gênero musical
considerado marginal, eles passam a ser vistos e classificados pela maioria dos
segmentos da sociedade como bandidos ou marginais. Vamos pensar que, na própria
concepção do shopping, não está prevista a presença desse público, ainda mais
em grupo e fazendo barulho. Pergunto-me se fosse em um shopping mais nobre, com
jovens brancos de classe média alta, vestidos como se espera que um jovem deste
estrato social se vista, se a repercussão seria a mesma, se a criminalização
seria a mesma. Talvez fosse considerado apenas um flash mob. Há uma
tendência, por parcela considerável da classe média, da mídia e do poder
público de perceber os jovens pobres a partir de três perspectivas, quase
sempre exclusivistas: a do bandido, a da vítima e a do herói.
P. Como funcionam estas três perspectivas –
bandido, vítima e herói?
R. São muito mais formas de enquadrar
esses jovens por aqueles que querem tutelá-los do que categorias assumidas
pelos próprios jovens. Por isso, são contextuais. Dependendo da situação e dos
atores sociais com quem dialogam, o jovem pode ser entendido a partir de uma
dessas categorias. O pichador, por exemplo, é um agente que pode mobilizar
todas essas classificações, dependendo do contexto e dos interlocutores: a
polícia, a secretaria de cultura, os pesquisadores acadêmicos ou a ONG que quer
salvar os jovens da periferia da violência. No caso do funk, por exemplo, já há
comentários e mesmo textos de pessoas mais politizadas vendo os rolezinhos como
uma ação afirmativa ou extremamente contestatória. Para estes, os protagonistas
dos rolezinhos são vítimas que se tornaram heróis. Outros, como a polícia, a
administração dos shoppings e a clientela, mas também seus vizinhos, que moram
lá nos bairros pobres da periferia, enxergam neles principalmente vilões e
mesmo bandidos.
Jovens como estes que estão nos rolezinhos não
necessariamente aceitam se encaixar nesses rótulos, mas, em alguns casos, podem
também se encaixar em todos eles ao mesmo tempo. Não se pode simplificar um
fenômeno como este. Porém, se pensarmos esse movimento que surge principalmente
com o hip hop, de valorizar a periferia como espaço político e de afirmação
positiva, é possível ver, sim, ainda que em menor intensidade, uma certa ação
política. De dizer: “Somos da quebrada e temos orgulho disso”. Um movimento de
reversão do estigma em marca positiva.
P. Mas há, de fato, uma ação consciente,
organizada, com um sentido político prévio? Ou o sentido está sendo construído
a partir dos acontecimentos, o que é igualmente legítimo?
R. Olha, sinceramente, é difícil dizer se há
um sentido político, direto, consciente e/ou explícito. Talvez por parte de
alguns, mas pelo que vi nas redes sociais, não da maioria. Se o movimento
persistir ou tomar outras formas, pode ser que tal sentido político fique mais
forte. Por enquanto é difícil analisar esse ponto. O antropólogo (indiano)
Arjun Appadurai analisa há algum tempo as mudanças que se processam no mundo
por causa do avanço das tecnologias de comunicação e de transporte. Segundo
este autor, as pessoas cada vez mais se deslocam no mundo atual, e não apenas
fisicamente, mas também e talvez principalmente pela imaginação, por causa de
meios de comunicação como a televisão e, mais recentemente, pela internet. Hoje
é possível imaginar-se nos mais diferentes lugares do mundo, mas também em
diferentes classes sociais. O que são os videoclipes de funk da ostentação que
não imagens/imaginações que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a
outra classe social ou possuir melhores condições econômicas para o consumo?
O que são os videoclipes de funk
ostentação que não imagens que os jovens produzem sobre o que seria pertencer a
outra classe social?”
Essa imaginação, segundo esse autor, pode
constituir-se como um projeto político compartilhado, mas pode também ser
apenas uma fantasia, como algo individualista e egoísta, sem grandes potenciais
políticos. Parece-me que o funk da ostentação em São Paulo e movimentos como o
dos rolezinhos nos shoppings têm intensamente essas duas potências. Difícil
saber se alguma delas irá prevalecer ou tornar-se hegemônica.
P. A escolha da música do MC Daleste,
assassinado num show em Campinas, para o rolezinho promovido no Shopping
Internacional de Guarulhos, pode ter um significado a mais?
R. A escolha da música do MC Daleste na
entrada dos jovens no shopping de Guarulhos me pareceu bastante significativa,
por vários motivos. Principalmente, porque a morte dele no palco, cantando
funk, de certa forma construiu um marco para esse funk da ostentação. O seu
assassinato acabou por dar ainda mais visibilidade a esta vertente do funk
paulista. MC Daleste cantava proibidão antes e, assim, essa relação confusa
entre crime e consumo manifesta-se de modo bastante forte no que o MC Daleste
representa. Há no seu próprio nome artístico essa afirmação de um certo orgulho
do lugar de onde vem e de ser da periferia, que tanto o funk quanto o hip hop
expressam. Não é por acaso que ele é “Da Leste”. Lembremos que Guarulhos também
está à leste da Região Metropolitana de São Paulo.
P. Hoje, uma parte significativa da geração
que se criou nas periferias com movimentos contestatórios como o hip hop e a
literatura periférica ou marginal tem, pelo funk da ostentação, assumido os
valores de consumo das classes médias e alta. Como você analisa este fenômeno e
o insere no contexto histórico atual do Brasil?
R. O que um evento como esse parece evidenciar
é, por um lado, esse anseio por consumir e por afirmar-se pelo consumo que
esses jovens vêm demonstrando já há algum tempo, pelas letras dos funks, mas
que também já é visto no hip hop. Apesar das críticas de certos segmentos do
hip hop, não sei se o funk ostentação rompe com o hip hop mais politizado dos
anos 1980 e 1990 ou se oferece uma das muitas possíveis continuidades a esse
movimento cultural. Parece-me que o funk ostentação é uma releitura paulista,
muito influenciada pelo hip hop, do funk carioca. Muitos MCs de funk eram MCs
de hip hop, muitos deles, além dos funks, cantam também raps, e músicas dos
Racionais são ouvidas nos shows. Trechos de letras de músicas dos Racionais
podem ser encontrados facilmente nas letras do funk. Agora, o fato é que o funk
não é tão marcado pela questão política como o hip hop. O Montanha, de Cidade
Tiradentes, disse-me algo interessante, certa vez, de que, na verdade, o hip
hop ofereceria um espaço de expressão política que faltava aos jovens, já o
funk é um espaço de lazer e de sociabilidade. Parece-me uma reflexão
interessante. Não que o hip hop não possa conter lazer e sociabilidade também,
nem o funk, protesto político, mas que as duas vertentes tendem para um dos
polos. O funk, aliás, ganhou esse grande espaço junto aos jovens das periferias
de São Paulo porque, nessa articulação de um espaço de lazer, configurou-se um
espaço para as mulheres que, no hip hop, era mais difícil. As mulheres são
presença fundamental nos bailes funks. O protagonismo da dança sempre foi
delas. Ainda que os meninos também dancem e as meninas participem cada vez mais
como MCs. O hip hop sempre foi muito mais masculino, da dança ao estilo de se
vestir.
P. Mas qual é a diferença, na sua opinião,
entre a forma como, por exemplo, os Racionais falam em consumo e os MCs da
ostentação falam de consumo?
Devemos questionar não a ação dos
meninos, mas as relações sociais fomentadas na contemporaneidade que se pautam
cada vez mais pela busca do reconhecimento pelo consumo, pela posse de bens.”
R. Há aí duas perspectivas. Quando digo que os
Racionais já cantavam isso, quero dizer que eles já identificavam essa
necessidade de consumir da juventude. E de consumir o que eles achavam que era
bom, nada de consumo consciente. Por isso digo que os Racionais já faziam, há
mais de dez anos, uma leitura desse anseio por consumir dos jovens pobres. Por
outro lado, há essa dimensão de movimentos como o dos escritores da periferia,
promovendo produtos da periferia, pela periferia. O funk ostentação começa sem
se preocupar com essa questão diretamente. Ele não tem dor na consciência por
cantar o consumo em suas músicas e aderir ao sistema, por exemplo. Porém, indiretamente,
se acaba chegando a um outro ponto, na medida em que uma parcela considerável
de jovens da periferia passa a possuir algum tipo de renda com a produção do
funk. Sejam os meninos que gravam os videoclipes, os próprios MCs, mas também
empresários, produtores, técnicos e mesmo alguns MCs tornando-se empreendedores
e criando seus próprios negócios. Como o MC Nego Blue, que observando de perto
o sucesso das roupas de grife entre os jovens, criou a Black Blue, uma loja de
roupas cujo símbolo é uma carpa colorida. Hoje, além de possuir lojas próprias,
já vende suas roupas em lojas multimarcas, ao lado de camisas da Lacoste ou de
outras marcas famosas que os meninos procuram, e por um preço muito parecido.
Uma das empresas que agencia shows de funk em Cidade Tiradentes chama-se
justamente “Nóis por nóis”.
Os rolezinhos parecem dizer: não apenas queremos
consumir, mas queremos ocupar em massa e se divertir aí nos seus shoppings, nos
seus ou nos nossos. É importante perceber também que os shoppings onde os eventos
ocorreram estão em regiões mais periféricas, provavelmente próximos ao próprio
bairro de moradia dos jovens. Por enquanto, eles não têm ido aos templos
maiores do consumo de luxo na cidade, na região dos Jardins, Faria Lima,
Marginal Pinheiros etc. Pode haver aí também um componente de um termo que
surgiu muito forte para mim na pesquisa que fiz em escolas de ensino médio, no
meu doutorado, que é a ideia do “zoar”. Eles querem zoar, que é chamar a
atenção para si e se divertir, namorar, brincar e, se for preciso, brigar.
P. Por que, neste momento, o lazer se impõe
como uma reivindicação desta geração, acima de questões como saúde, educação e
transporte de qualidade?
R. Acho que não há uma reivindicação política
bem formuladinha como acontecia com o hip hop: queremos mais saúde, educação e
lazer. Eles simplesmente querem estar nos shoppings para zoar e vão. Não há
essa reflexão mais elaborada que o hip hop produz, é mais espontâneo. Esse
talvez possa ser um ponto de distinção. E o próprio funk é, por si só, lazer e
diversão, um dispositivo poderosíssimo para dançar e motivar paqueras. O zoar
pode ser lido como um ato político, mas não me parece intencional. Acho que
cria uma tensão que é política, que é de disputa de poder pelos espaços da
cidade, mas não há um manifesto pela zoeira ou pelos rolezinhos, como houve,
por exemplo, no caso do manifesto da arte periférica dos escritores.
P. Há também um movimento maior para sair dos
guetos e ocupar os guetos da classe média? Em massa e não mais individualmente,
como quando um grupo de rap aparecia numa TV, mesmo sendo a MTV, ou um escritor
do movimento literário marginal ou periférico publicava numa grande editora?
Esta é uma novidade importante?
R. Acho que abre, sim, para fora do gueto, do
bairro onde se vive, mas não para muito longe, pois, afinal, os shoppings para
os quais eles vão estão do lado de suas casas. Neste sentido, acho que o hip
hop, apesar de falar mais do gueto, abre-se muito mais para fora do gueto, na
medida em que conquista um espaço importante nas políticas públicas de cultura,
por exemplo.
É como se a sociedade dissesse:
‘Vocês, pobres, podem consumir, mas ir ao shopping em grandes grupos, só para
zoar e cantar funk, aí já é vandalismo’.”
Claro que esse espaço de lazer é problemático e conflitivo
mesmo dentro dos bairros das periferias onde moram esses jovens. Se
entrevistarmos os seus vizinhos, certamente a maioria vai se posicionar
totalmente favorável à proibição das festas de rua que eles organizam, com som
alto que muitas vezes toma a madrugada toda. Por isso, acho importante não
tomar o funk nem como um movimento libertador, nem como o grande vilão ou o
grande movimento de corrupção da juventude contemporânea, como setores mais
moralistas, à esquerda e à direita, tendem a fazer.
A questão do consumo também me parece problemática.
O desejo pelo consumo sempre existiu. Bem antes do governo Lula, o processo de
urbanização induz a esse apego maior ao consumo. Porém, não dá para se negar
que houve, nos últimos anos, também uma melhora econômica para segmentos que
antes estavam bastante afastados do mercado. Porém, acho que reduzir o sucesso
do funk da ostentação a isso é simplificar demais o movimento e esquecer que
ocorreram e ocorrem movimentos juvenis parecidos em outras partes do mundo,
como o próprio gangsta rap, nos Estados Unidos, no qual os videoclipes se
inspiram.
Devemos questionar não a ação dos meninos, mas as
relações sociais fomentadas na contemporaneidade. É preciso conceder aos
jovens, e não apenas aos pobres, mas aos de classe média e alta também, outros
espaços de reconhecimento e de estabelecimento de relações sociais que não
sejam pautados pela afirmação por meio da posse e do consumo de bens. Porque,
afinal, como dizem os Racionais, mais uma vez: “Quem não quer brilhar, quem
não? Mostra quem. Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém”. De repente, para
alguns, ter um tênis caro, um smartphone de última geração ou ir ao shopping
para zoar, pode ser uma forma encontrada para tentar brilhar.
P. Ao ocupar os shoppings, os adeptos do funk
da ostentação estariam promovendo sua primeira atitude de insurgência contra o
sistema, no sentido de: “Vou ocupar o espaço que me é negado ou onde não me
querem”. É isso? Ou as próprias letras das músicas, interpretadas, em geral,
como adesão ao sistema, já seriam, de fato, uma insurgência, na medida que se
apropriam, simbolicamente, dos valores da elite e da classe média e, agora, com
os rolezinhos, também de seus espaços físicos?
R. Sim, acho que essa é a maior irritação da
classe média com esses movimentos. Basta ver os comentários aos videoclipes no
YouTube, irritados com os meninos ostentando e exibindo-se com produtos mais
caros, que não deveriam estar com aqueles meninos, pobre e negros, em sua
maioria. Esta é a principal insurgência que eles provocam. A classe média, de
uma maneira geral, a mais pobre ou a mais rica, a mais ou menos
intelectualizada, irrita-se bastante quando os subalternos compram bens caros,
mesmo antes deles. Já ouvi comentários indignados, do tipo: “Minha empregada comprou
uma televisão de última geração, melhor do que a minha”. Isso tem antecedentes
históricos que parecem refletir até hoje. James Holston, ainda no livro sobre
cidadania insurgente, que citei anteriormente, traz como exemplo a legislação
colonial portuguesa, que proibia aos negros o uso de joias e artigos
considerados finos…
P. Parece que os “rolezeiros” dos shoppings
estão ocupando o mesmo lugar simbólico dos “vândalos” nas manifestações, na
narrativa feita por parte da grande mídia e pelas autoridades instituídas. Como
você interpreta essa reação?
Os comentários em sites e redes
sociais revelam esse profundo racismo entranhado em parcela considerável da
população brasileira.”
R. O que me assustou de verdade nessa história
toda foram as reações, de mídia e de polícia, condenando e mandando prender,
mesmo em casos em que disseram que não houve arrastões, mas correrias. Fico
questionando quem provocou a correria: os jovens ou a ação dos seguranças e da
polícia? Eventos como estes revelam também uma faceta complicada e extremamente
preconceituosa da classe média brasileira. Dei uma entrevista curta para o site
de um grande grupo de comunicação e fiquei assustado ao ler os comentários dos
leitores, de um ódio terrível contras os meninos e meninas que foram aos shoppings,
contra os pobres, contra mim, que tive uma fala dissonante na entrevista,
ressaltando a forma preconceituosa com que tal tema vinha sendo tratado. Ao
falarem do evento, algumas palavras utilizadas como categorias de acusação
contra os jovens e as jovens foram bastante reveladoras do preconceito, e mesmo
do racismo, deste segmento social: “favelados”, “maloqueiros”, “bandidos”,
“prostitutas” e “negros”. Nesse último caso, inclusive, fica evidente o racismo
que aparece em muitos comentários dessa notícia, mas também nas comunidades dos
rolezinhos que os jovens criaram nas redes sociais. Um dos comentários pede
para que os jovens voltem para a África. Isso é muito grave. Revela esse
profundo racismo entranhado em parcela considerável da população. Como se tal
sociedade dissesse, por meio dos representantes dos shoppings, da mídia e da
polícia, brincando um pouco com a questão das manifestações de junho: “Vocês,
pobres, podem consumir, mas ir ao shopping em grandes grupos, só para zoar e
cantar funk, aí já é vandalismo”.
P. A classe média é racista?
R. O que chamamos de classe média não é um
todo homogêneo. É possível segmentá-la em diferentes níveis e a partir de
diferentes contextos, é possível pensar em uma classe média intelectualizada ou
não intelectualizada. Contudo, parece-me que a divisão mais importante para se
pensar a classe média em São Paulo é a que se dá por critérios socioeconômicos
e espaciais. Há a classe média que está concentrada principalmente no entorno
do eixo central, que vai do Centro a Pinheiros, passando pela Avenida Paulista
e bairros próximos. Esta, em sua maioria, vive numa bolha e tem poucos contatos
com outras classes sociais, com exceção dos trabalhadores subalternos:
porteiros, empregadas domésticas etc. Para esta, em grande medida, o Shopping
Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou Londres.
Porém, há também certa classe média baixa que vive
na periferia. Citando novamente o Holston, ele fala de uma diferenciação que se
produziu nas periferias de São Paulo entre aqueles que compraram seus terrenos,
ainda que por meio de contratos obscuros, e aqueles que ocuparam os espaços da
cidade, formando as favelas. Essa pequena diferença não cria um grande abismo
econômico, mas produz uma profunda diferenciação, por meio do qual um grupo
estigmatiza o outro. Já vi um indivíduo desta classe média da periferia
questionando programas como o bolsa família, porque tinha visto potes vazios de
iogurte no lixo da favela. Este indivíduo afirmava que nem ele consumia iogurte
com tanta frequência, como eles se davam ao direito de consumir tal produto,
que era um luxo, raro, mas sobre o qual ele detinha certa exclusividade?
A questão do auxílio aos mais pobres,
principalmente o bolsa família, é um forte fator de estigmatização por parte
desses diferentes segmentos da classe média, mas principalmente por parte dessa
classe média da periferia. Estive, recentemente, em uma escola pública próxima
a uma grande favela de São Paulo. Segundo os professores, um dos problemas
daquela escola era o fato de que 90% dos alunos vinham da favela vizinha. E
que, hoje, esses alunos estavam muito acomodados, pois viviam de bolsas e na
favela tinham tudo muito fácil, com a grande quantidade de projetos presentes
por lá. Inclusive, projetos de música, ressaltou um professor. É muito
importante refletir sobre isso, porque esses professores, se não moram na
favela, são vizinhos dela. Mas, ainda assim, permitem-se diferenciar-se dos
jovens por questões muito pequenas. E são estes professores os responsáveis por
formar esses jovens. Será que, com este olhar, são capazes de lutar para que a
escola se torne um espaço de convivência, afirmação e reconhecimento para os
jovens?
P. Como você, que tem acompanhado o cotidiano
de escolas públicas, em São Paulo, percebe a educação?
Para uma parcela da classe média
de São Paulo, o Shopping Itaquera pode estar mais distante do que Paris ou
Londres.”
R. É necessário pensarmos em uma educação para
as diferenças, para que não caiamos mais na armadilha da intolerância e das
análises apressadas e preconceituosas de setores das elites e das camadas
médias, ao se referirem aos “subalternos”. Lembro-me de um documentário
português, que vale a pena ser assistido, sobre a história de um arrastão que
não existiu. Chama-se: “Era uma vez um arrastão” (assista aqui). Nele,
conta-se do dia em que jovens caboverdianos ou descendentes de caboverdianos
resolveram frequentar a nobre praia de Carcavelos, em Portugal. A polícia, ao
ver a concentração de jovens de origem africana, assustou-se e resolveu
intervir, provocando uma grande correria, que foi noticiada como arrastão. Mas,
de fato, os jovens fugiam da repressão policial gratuita. Isso talvez nos
ensine algo sobre os arrastões que estamos a criar todo dia, criminalizando
jovens pobres cotidianamente.
Quando estive pesquisando em escolas públicas da
periferia de São Paulo, era comum ouvir dos professores que, naquela escola, os
alunos eram todos bandidos ou marginais. O discurso da criminalização é efetivo
e poderoso e condena muita gente ao fracasso escolar e mesmo ao crime. O
sociólogo polonês Zygmunt Bauman, num livro sobre educação e juventude,
ressalta a necessidade cada vez mais premente, na contemporaneidade, de
desenvolvermos a arte de conviver com os estranhos e a diferença. Em especial
num mundo no qual as migrações tendem a aumentar cada vez mais. No nosso caso,
não foi preciso a chegada de estrangeiros para a expressão das mais brutais
formas de preconceito, pois os estrangeiros éramos nós, os brasileiros. Mas
brasileiros que moram muito, muito distante, ainda que vizinhos. Moram em
Guaianazes, Capão Redondo, Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila
Brasilândia…
P. Em que medida, na sua opinião, os
rolezinhos se ligam às manifestações de junho?
R. Acho que não há uma ligação direta. Mas,
indiretamente, é possível perceber a reivindicação comum do uso do espaço
público e de quebra das marcas da segregação. Lembro-me que, antes das
manifestações de junho, para a imprensa conservadora era um tabu ocupar a
Avenida Paulista. Os movimentos sociais mostraram que não apenas não era um
tabu, como era um direito, o direito de ir às ruas e ocupá-las para protestar.
Os rolezinhos não parecem ter uma pauta tão clara, mas também estão, ainda que
indiretamente, dizendo: “Vocês não disseram que era bom consumir? Pois bem, nós
também queremos!”
P. Essa ocupação de espaços que supostamente
pertenceriam a “outros”, tanto no caso das manifestações como no caso dos
rolezinhos, parece marcar uma novidade importante. O que está acontecendo?
R. Acho que a novidade está aí, mas é
difícil dizer o que está acontecendo ou o que acontecerá. Pode ser apenas um
surto – algo parecido com o que foi a revolta da vacina como reação às
propostas políticas opressoras de reforma sanitária do Rio de Janeiro, por
exemplo – ou pode ser uma nova forma de pensar os espaços públicos e privados
nas cidades brasileiras. Porém, é difícil prever. Os rolezinhos podem ter
acabado nesta semana, por exemplo. E movimentos como os de junho não se
repetiram com tanta intensidade e repercussão. Contudo, o que movimentos como
estes garantem é a possibilidade de se tensionar essa ocupação dos espaços
urbanos, amplamente negada até então.
Aqui não foi preciso a chegada de
estrangeiros para a expressão das mais brutais formas de preconceito, pois os
estrangeiros éramos nós, os brasileiros que moram em Guaianazes, Capão Redondo,
Grajaú, Cidade Ademar, Cidade Tiradentes, Vila Brasilândia…”
P. Por que este nome, rolezinho? E que
significados ele contém?
R. Rolezinho é um termo que está diretamente
ligado à ideia de lazer. De sair para se divertir e usufruir da cidade. Os
pichadores, com os quais realizei pesquisa no mestrado, também usam a ideia de
rolê, para se referirem às suas pichações. Com isso estão dizendo que pichar é
dar voltas para conhecer e se apropriar da cidade. Parece que, por este termo,
indiretamente, podemos entender uma reivindicação pelo direito de se divertir
na cidade.
P. Divertir-se na cidade não seria um ato de
insubordinação para jovens pobres e negros? Talvez até o maior ato de
insubordinação?
R. Sim, principalmente numa sociedade em que
pobres e negros têm que trabalhar – e apenas trabalhar – sem reclamar.
Lembremos de que a ROTA, no final do regime militar, atuava nas periferias
abordando os moradores e cobrando-lhes a carteira profissional como prova de
que eram trabalhadores e não vagabundos. Devotados, portanto, ao trabalho e não
à diversão. Agora, claro que esses jovens não estão pensando exatamente nisso.
Querem muito mais é se divertir.
P. Como entender este fenômeno, que é, ao
mesmo tempo, uma insubordinação e uma adesão ao sistema?
R. Acho que a melhor palavra é paradoxo.
O funk da ostentação em São Paulo é paradoxal: não dá para situá-lo num polo ou
noutro, dentro do modo tradicional de pensar a política. Conservador ou
revolucionário? Nenhum dos dois, mas com possibilidade para os dois ao mesmo
tempo.
Eliane Brum é escritora, repórter e
documentarista. Autora dos livros de não ficção A Vida Que Ninguém vê,
O Olho da Rua e A Menina Quebrada e do romance Uma
Duas.