Os
graves retrocessos propostos em relação aos povos indígenas nos
distintos poderes do Estado, no último ano, configuraram um cenário nada
promissor para 2016, ao constituírem, mais do que ameaças, realidades
que vão se concretizando na perspectiva de suprimir efetivamente
direitos e consequentemente de adotar políticas de Estado voltadas a
negar a existência e continuidade dos povos indígenas enquanto
coletividades étnica e culturalmente diferenciadas, portanto sujeitos de
direitos que num Estado verdadeiramente democrático e numa sociedade
plural seriam plenamente respeitados, promovidos e protegidos de forma
diferenciada.
A
garantia dos direitos dos povos indígenas reconhecidos pela
Constituição Federal e Tratados Internacionais que revogaram a ideologia
do assimilacionismo é responsabilidade de todo o Estado. Por isso
preocupa a ofensiva sistemática promovida principalmente pelo
Legislativo e Executivo. Constitucionalmente, este último tem
prerrogativas, mas que ele próprio está configurando com suas decisões e
práticas uma política indigenista notoriamente anti-indígena. Política
essa que vai totalmente na contramão das proposições e compromissos
assumidos pela presidenta Dilma Rousseff no seu discurso diante cerca de
2000 lideranças indígenas de todas as regiões do país que participavam
da I Conferência Nacional de Política Indigenista, realizada em Brasília
– DF, entre 14 a 17 de dezembro de 2015.
Deixando
de lado algumas imprecisões ou inverdades, como a de que “a FUNAI foi
reestruturada e que tem que ser aperfeiçoada”, que “a SESAI (Secretaria
Especial de Saúde Indígena) melhorou muita coisa” e que a Lei 13.123 da
Biodiversidade favorece aos povos, a Presidenta afirmou, entre outras
coisas:
“A
I Conferência Nacional de Política Indigenista é um marco histórico. A
partir da Conferência, nós vamos construir uma sistemática de diálogo,
de propostas e ações para que as políticas indigenistas sejam cumpridas
em sua totalidade. Ver o que já foi feito, o que é necessário fazer, o
que não é para fazer… Política assentada no reconhecimento da
diversidade étnica, que respeite aos povos indígenas, seus
territórios, cultura e saberes e que reconheça o protagonismo, a
autonomia dos povos indígenas para a tomada de decisões… Os povos
originários são fundamentais para a construção da Democracia, de um país
mais justo, mais plural, quando valoriza a contribuição desses povos
indígenas na formação do país”.
A
presidenta assumiu o compromisso de: dar mais atenção à saúde indígena;
instituir o Conselho Nacional de Política Indigenista como espaço de
diálogo; fortalecer a FUNAI; criar a Rede Brasileira de Educação
Superior Intercultural Indígena, para promover o acesso e permanência
dos estudantes indígenas nas Universidades; promover a formação inicial e
continuada dos professores indígenas; dar continuidade às demarcações,
pois “Democracia é demarcação de todas as terras indígenas”.
No
entanto, a mandatária tão logo terminou a Conferência, em 29 de
dezembro, encaminhou ao Congresso Nacional mensagem vetando
integralmente o projeto de lei apresentado pelo Senador Cristovam
Buarque (PL 5944/2013, n. 186/08 no Senado) que visava alterar a LDB
(Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) em dois artigos, a
favor da educação escolar indígena, no sentido de “expandir a
possibilidade do uso das línguas indígenas para além do ensino
fundamental (o que, diga-se de passagem, já ocorre em vários lugares) e
determinar que as avaliações educacionais considerem o caráter
diferenciado da educação entre povos indígenas”.
Mas
é bem antes da Conferencia que o governo já vinha agindo contra os
direitos indígenas. Em 2015, ele trabalhou intensamente no Congresso
Nacional pela aprovação da Lei 13.123 da Biodiversidade (que tramitou
como Projeto de Lei n.º 7.735/2014 e no Senado como PLC n.º 02/2015), a
qual regulamenta o acesso e a exploração econômica da biodiversidade e
da agrobiodiversidade brasileiras, bem como dos conhecimentos
tradicionais associados. Deliberadamente, o Poder Executivo exclui do
processo de elaboração do PL, sem qualquer debate ou consulta,
representantes dos Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e
Agricultores Familiares, favorecendo visivelmente o empresariado dos
setores farmacêutico, de cosméticos e do agronegócio (principalmente
sementeiros), em flagrante violação da Convenção n.º 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), da Convenção da Diversidade Biológica
(CDB), do Tratado Internacional dos Recursos Fitogenéticos para a
Alimentação e Agricultura/FAO (TIRFAA) e da Constituição Federal. Só na
fase de regulamentação, o Governo movimentou-se para envolver os
detentores de conhecimentos tradicionais e outros representantes da
sociedade civil.
Ainda
em 2015, contrariando a vontade de diversos povos e organizações
indígenas, que além de terem lutado arduamente pela sua criação,
reivindicam até hoje o efetivo funcionamento da Secretaria Especial de
Saúde Indígena (SESAI), o governo encaminhou ao Congresso Nacional o PL 03501/2015, que
“autoriza o Poder Federal a instituir serviço autônomo denominado
Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI)”, órgão que o movimento
indígena considera mecanismo de privatização da saúde indígena. Mais uma
vez, contrariando o direito de consulta livre, prévia e informada dos
povos indígenas, conforme estabelece a Convenção 169 da OIT.
No
mês de agosto de 2015, ministros do governo já tinham negociado com o
Renan Calheiros e outros senadores a chamada Agenda Brasil, supostamente
voltada a tirar o país da crise econômica, mas a custa de profundos
retrocessos em questões socioambientais, rifando os direitos
territoriais indígenas e a regulação ambiental, em favor, obviamente, do
setor de mineração, do agronegócio e de obras do PAC.
Somam-se
certamente a todas essas medidas de flexibilização da legislação
indigenista e ambiental – que o governo mantém em pauta – os impactos
conhecidos da Portaria 303, a paralisia na demarcação das terras
indígenas e a criminalização de comunidades e lideranças indígenas,
inclusive a mando de invasores de terras indígenas sob olhar omisso do
governo.
Nesse
contexto, fica difícil acreditar na mudança de rumo da política
indigenista que implique no real fortalecimento da FUNAI, no
funcionamento do Conselho Nacional de Política Indigenista e na
implementação das 216 propostas priorizadas pela I Conferência Nacional
de Política Indigenista, em torno dos eixos temáticos: territorialidade e
direito territorial; autodeterminação, participação social e direito à
consulta; desenvolvimento sustentável de terras e povos indígenas;
direitos individuais e coletivos (educação, saúde etc); diversidade
cultural e pluralidade étnica; direito à memória e verdade.
O DESMONTE DA FUNAI
Fica
mais difícil ainda confiar no governo quando ele próprio, por meio do
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), determina o
desmonte do órgão indigenista, casual ou propositalmente na perspectiva
almejada pela bancada ruralista, que teve que criar uma CPI da FUNAI e
do INCRA para consumar os seus propósitos.
O
ano de 2016 começou com o anúncio de um corte de R$ 5 milhões no
orçamento da FUNAI, que de R$ 144 milhões, totalmente executados em
2015, baixou para este ano a R$ 139 milhões, sem contar com os cortes
que ainda poderão ser feitos. O governo quer ainda um corte de 13% nos
DAS, o equivalente a 104 cargos na FUNAI, com impacto imprevisível na
estrutura e no trabalho administrativo da instituição, tanto na sede
quanto nas Coordenações Regionais. Concretamente, o Plano prevê a
extinção de 41 Coordenações Técnicas Locais (CTLs) e 35 cargos de
assistentes de coordenação, coincidentemente ocupados por indígenas.
Esta
nova proposta de reestruturação mais uma vez não foi discutida nem com
as Coordenações Gerais da sede, nem com as Coordenações regionais e com
os servidores, muito menos com os povos e organizações indígenas.
A
APIB reivindica do governo mais coerência entre seus propósitos –
apregoados pela própria presidenta da República durante a I Conferência
Nacional de Política Indigenista – e suas ações, que deveriam contribuir
para o fiel cumprimento de suas prerrogativas constitucionais, para a
devida proteção e promoção dos direitos indígenas.
Por
fim, a APIB conclama os povos e organizações indígenas, e os segmentos
aliados da sociedade, para que continuem mobilizados na defesa desses
direitos hoje gravemente ameaçados e atacados nos distintos âmbitos do
Estado e por setores poderosos da sociedade brasileira.
Pelo direito a continuarmos vivos enquanto povos.
Brasília – DF, 24 de fevereiro de 2016.
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
Mobilização Nacional Indígena