Em carta, Marcos Tupã,
coordenador da Comissão Guarani Yvyrupá, responde às críticas sobre a
intervenção em escultura ao lado do Parque Ibirapuera, em São Paulo
Da Redação
Nesta
semana, a obra do escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret recebeu
tintas vermelhas, em um protesto realizado por índios do estado contra a
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que retira do governo
federal a autonomia da demarcação de terras, transferindo para o
Congresso Nacional. O monumento, inaugurado em 1953, presta uma
homenagem aos bandeirantes, responsáveis pelo assassinato de índios, nos
séculos 17 e 18. Leia abaixo a carta de Marcos Tupã:
Monumento à resistência do povo guarani
Para nós, povos indígenas, a pintura não
é uma agressão ao corpo, mas uma forma de transformá-lo. Nós, da
Comissão Guarani Yvyrupa, organização política autônoma que articula o
povo guarani no sul e sudeste do país, realizamos no último dia 02 de
outubro, na Av. Paulista, a maior manifestação indígena que já ocorreu
em São Paulo desde a Confederação dos Tamoios. Mais de quatro mil
pessoas ocuparam a Av. Paulista, sendo cerca de quinhentas delas dos
nossos parentes, outros duzentos de comunidades quilombolas e mais de
três mil apoiadores não-indígenas, que viram a força e a beleza do nosso
movimento. Muitos meios de comunicação, porém, preferiram noticiar
nossa manifestação como se tivesse sido uma depredação de algo que os
brancos consideram ser uma obra de arte e um patrimônio público.
Saindo da Av. Paulista, marchamos em
direção a essa estátua de pedra, chamada de Monumento às Bandeiras, que
homenageia aqueles que nos massacraram no passado. Lá subimos com nossas
faixas, e hasteamos um pano vermelho que representa o sangue dos nossos
antepassados, que foi derramado pelos bandeirantes, dos quais os
brancos parecem ter tanto orgulho. Alguns apoiadores não-indígenas
entenderam a força do nosso ato simbólico, e pintaram com tinta vermelha
o monumento. Apesar da crítica de alguns, as imagens publicadas nos
jornais falam por si só: com esse gesto, eles nos ajudaram a transformar
o corpo dessa obra ao menos por um dia. Ela deixou de ser pedra e
sangrou. Deixou de ser um monumento em homenagem aos genocidas que
dizimaram nosso povo e transformou-se em um monumento à nossa
resistência.
Ocupado por nossos guerreiros xondaro, por nossas mulheres e
crianças, esse novo monumento tornou viva a bonita e sofrida história
de nosso povo, dando um grito a todos que queiram ouvir: que cesse de
uma vez por todas o derramamento de sangue indígena no país! Foi apenas
nesse momento que esta estátua tornou-se um verdadeiro patrimônio
público, pois deixou de servir apenas ao simbolismo colonizador das
elites para dar voz a nós indígenas, que somos a parcela originária da
sociedade brasileira. Foi com a mesma intensão simbólica que travamos na
semana passada a Rodovia dos Bandeirantes, que além de ter impactado
nossa Terra Indígena no Jaraguá, ainda leva o nome dos assassinos.
A tinta vermelha que para alguns de
vocês é depredação já foi limpa e o monumento já voltou a pintar como
heróis, os genocidas do nosso povo. Infelizmente, porém, sabemos que os
massacres que ocorreram no passado contra nosso povo e que continuam a
ocorrer no presente não terminaram com esse ato simbólico e não irão
cessar tão logo. Nossos parentes continuam esquecidos na beira das
estradas no Rio Grande do Sul. No Mato Grosso do Sul e no Oeste do
Paraná continuam sendo cotidianamente ameaçados e assassinados a mando
de políticos ruralistas que, com a conivência silenciosa do Estado,
roubam as terras e a dignidade dos que sobreviveram aos ataques dos
bandeirantes. Também em São Paulo esse massacre continua, e perto de
vocês, vivemos confinados em terras minúsculas, sem condições mínimas de
sobrevivência. Isso sim é vandalismo.
Ficamos muito tristes com a reação de
alguns que acham que a homenagem a esses genocidas é uma obra de arte, e
que vale mais que as nossas vidas. Como pode essa estátua ser
considerada patrimônio de todos, se homenageia o genocídio daqueles que
fazem parte da sociedade brasileira e de sua vida pública? Que tipo de
sociedade realiza tributos a genocidas diante de seus sobreviventes?
Apenas aquelas que continuam a praticá-lo no presente. Esse monumento
para nós representa a morte. E para nós, arte é a outra coisa. Ela não
serve para contemplar pedras, mas para transformar corpos e espíritos.
Para nós, arte é o corpo transformado em vida e liberdade e foi isso que
se realizou nessa intervenção.
Aguyjevete pra todos que lutam!
Marcos dos Santos Tupã, 43, é liderança indígena e Coordenador Tenondé da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY).