sábado, 31 de agosto de 2013

QUANDO O OUTRO OCUPA O NOSSO (O SEU) ESPAÇO (RECOMENDADO)


Por  Rogerio Haesbaert

Gostaria de compartilhar um dos momentos mais inusitados, ricos e de maior aprendizado que já presenciei no ambiente acadêmico, normalmente tão disciplinado, formal e hierárquico. Nosso seminário, com o vistoso título de “IV Encontro da Cátedra América Latina e Colonialidade do Poder: Para além da crise? Horizontes desde uma perspectiva descolonial”, transcorria normalmente e com excelentes apresentações em sua segunda mesa-redonda (“painel”), nesta manhã de quinta-feira.

O sociólogo Agustín Lao-Montes, do Equador, havia terminado sua fala sobre a relação Estado e Poder (tema da mesa) nas recentes transformações políticas equatorianas e eu, como coordenador, acabara de passar a palavra ao sociólogo Edgardo Lander, que falava sobre as contradições da experiência política venezuelana. Olhando para o fundo da sala verifiquei surpreso que um homem alto, de pele escura e vestes cerimoniais, como um sacerdote, começava a percorrer a lateral do grande auditório com uma maraca numa das mãos e seu ruído característico, mas que não chegava a prejudicar a audição da fala do palestrante.

As pessoas se entreolhavam, ninguém entendia, ele, avançando lentamente, chegou até a nossa frente, balançando sempre sua maraca, depois deu uma volta completa no salão e retornou pelo corredor do meio, onde ocorria a filmagem, pois o evento estava sendo transmitido diretamente pela internet. Chegando novamente até nossa mesa, sentou-se ao nosso lado, mas no chão, enquanto todos se entreolhavam, sem saber se prestavam atenção no palestrante ou no até ali “intruso”, pouco entendendo o que se passava. A sensação inicial numa plateia “tão educada” e totalmente despreparada para o imprevisto de uma performance como aquela foi de rechaço desse Outro que, re pentinamente e sem pedir licença, havia se instalado entre nós. Ou melhor, havia, literalmente, “ocupado nosso espaço”.

Mesmo com tantos movimentos inspirados nos “Occupy” anti-globalismo capitalista que se espalharam pelo mundo, e que tanto discutimos e apoiamos, não contávamos com um “Ocupa” deste tipo, aqui, no “nosso” espaço, do nosso lado. Enquanto o “ocupante” continuava uma espécie de ritual, sentado, retirando e colocando seu cocar e parte de suas roupas, um dos organizadores do evento se levantara e, na dúvida se pedia para o “estranho” se retirar, acabou indo conversar com outros participantes, a fim de obter mais informações sobre o que se passava. Enquanto isso, para todos, ficava cada vez mais evidente que, ao contrário de algum “louco” ou “pedinte” que alguns imaginaram, tratava-se de um indígena que, ali, naquele ambiente, como geralmente ocorre quando vemos um indígena com suas roupas e objetos, nos parece um Outro estranho e desintegrado de nosso espaço-tempo cotidiano. Após pouco tempo sentado, com seu cocar e sem camisa, o índio se levanta e solicita o microfone a Edgardo, que imediatamente interrompe sua fala e passa-lhe o microfone.

Era o Outro, esse Outro que envolvia os nossos discursos com toda força, mas de forma puramente teórica, que agora, para nossa surpresa, ganhava efetiva voz e ocupava ali o seu lugar. Ele se apresentou como o líder espiritual Ash Ashaninka e fez um breve relato da situação da “Aldeia Maracanã”, de onde tinham sido expulsos em nome do projeto olímpico.

Falando em português e um pouco de espanhol, defendeu com um belo discurso os direitos de seu povo, que recentemente conquistou uma vitória, com o apoio das manifestações populares, no recuo do Estado em seu projeto de transformar o prédio que reivindicam (junto ao estádio Maracanã) em um Museu Olímpico. Ele conclamou as mulheres a participarem do 1º Encontro de Mulheres de Lutas d a Aldeia no dia seguinte, e a todos para visitarem e apoiarem a Aldeia, em defesa, agora, da Universidade Indígena. Em sua despedida, do fundo do salão, voltou a defender a criação dessa Universidade, e foi aplaudido por todos.

Foi um momento único, desses de subversões que só aparecem em nossas falas e que, de repente, da forma mais inusitada, eclodiu concretamente ao nosso lado. O indígena subverteu os usos, as normas, as etiquetas, e se impôs da maneira a mais emblemática, com sua cultura vertendo por todos os poros, frente a um público perplexo que, primeiro, recusando a surpresa, reagiu com indiferença (frente à crua, brutal, diferença do Outro), depois, imaginou expulsá-lo (frente ao incômodo de sua insistência e ousadia) para, finalmente, dar-lhe voz na esperança de que um discurso racional pudesse enfim sanar dúvidas e buscar uma sempre almejada “explicação”. Mas logo descobrimos que não havia, ali, apenas um teatro.

Nem apenas uma lógica. Separar arte, sensibilidade, e razão, esclarecimento, definitivamente, não faz parte do universo indígena. Ele primeiro, ainda que não soubéssemos, nos abençoou, protegeu e louvou nossa fala. Depois, não a interrompeu, como pensamos, mas juntou-se e embrenhou-se nela, de forma que nosso discurso se fizesse também o dele (sem que o percebêssemos, ele já dissera, ao tomar o microfone, que nosso discurso ERA o dele).

A luta, a prática efetiva de resistência, que louvávamos em nossos discursos, mais do que ter voz, se corporificou, ali. A corporificação – que de alguma forma é também uma territorialização - do Outro, é muito distinta das nossas concepções do ou sobre o Outro, e mostrava ali toda a sua força. O indígena virou a insígnia de uma luta que é também a nossa, mas que até ali estava um tanto apartada, dialogada sem o Outro, ou com Outros desfigurados, naquele salão suntuoso e hierárquico. O índio corrompeu nosso espaço e fez da “nossa ” Universidade a sua. Bradou, ali, por uma Universidade também indígena, que deveria ser sua. Eles lutam agora por uma Universidade Indígena, pois na “nossa”, como neste evento, raramente são convidados.

Ash Ashaninka nos deu uma lição, e aquela mesa-redonda não pode ser a mesma depois de sua passagem. Ainda que Edgardo Lander levasse sua fala até o final como se tivéssemos apenas aberto um parênteses, tomei a palavra antes de passá-la ao palestrante seguinte (outro grande intelectual, o filósofo boliviano Luis Tapia) para compartilhar com o público a minha sensação de que algo único tinha se passado ali, e que tínhamos aprendido uma grande lição.

O Outro nos surpreendeu e nos fez repensar em que medida a “reflexão teórica” dos grandes eventos, por mais praxis que se alegue, não pode ser dissociada da presença concreta dos sujeitos com os quais dialogamos e com quem, afinal de contas, efetivamente lutamos. O Outro, enfim, éramos nó s.


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