Por Marina Amaral
Emails,
planilhas, fotos e denúncias de ex-gerente de segurança, que representa contra a
companhia no MPF, mostram que a Vale espiona os movimentos sociais e grampeia
funcionários - e até jornalistas - para defender seus interesses
“Tem
que deixar o buraco do rato, não pode encurralar, isso eu aprendi no Exército”.
A frase crua expressa a revolta de André Luis Costa de Almeida, 40 anos, ao
explicar por que decidiu revelar o que sabe sobre a área de vigilância e
inteligência da Vale S.A, onde trabalhou durante oito anos – nos dois primeiros
como terceirizado e depois como funcionário do Departamento de Segurança
Empresarial. Ele era responsável pelo serviço de inteligência e gestor de
contratos da Vale com empresas terceirizadas da área, quando foi demitido, em
março de 2012.
“Eu
tentei conversar, mandei e-mails, nada: eles prometeram que não iam me demitir
por justa causa, voltaram atrás, depois disseram que manteriam sigilo sobre o
assunto mas chamaram meu novo chefe para dizer que minha presença dificultaria a
relação comercial dele com a Vale. Tive que sair, não podia prejudicar o cara.
Agora eu não me importo com mais nada: só quero que a verdade apareça”, disse
logo no primeiro encontro com a Pública, em meados de maio.
Um
ano depois de sua demissão – em 18 de março deste ano – André Almeida entrou com
umarepresentação no Ministério Público
Federal afirmando que “participava de reuniões, recebia relatórios e era
informado formal e informalmente de diversas situações que considero antiéticas,
contra as normas internas e/ou ilegais”, admitindo que “por pressão sobre o meu
emprego, me sujeitei a executá-las”, e anexando demonstrativos de notas fiscais
que descrevem entre os serviços contratados pela Vale à empresa de
inteligência Network, do Rio
de Janeiro: ainfiltração de agentes em movimentos sociais (no
Rio, Espírito Santo, Minas Gerais, Pará e Maranhão); o pagamento de propinas a funcionários
públicos (para obter informações de apoio às “investigações internas”, na
Polícia Federal e em órgãos da Justiça em São Paulo); quebra de sigilo bancário
e da Receita (de funcionários, até mesmo diretores), “grampos telefônicos” (entre eles o da jornalista
Vera Durão, quando ela trabalhava no jornal Valor Econômico), “dossiês de políticos” (com informações públicas e
“outras conseguidas por meios não públicos” sobre políticos e representantes de
movimentos sociais).
Recusando
o café e a água oferecidos em um bar no aeroporto do Santos Dumont, e
atropelando as frases, André contou a história que o levou à Vale depois de 8
anos de exército, convidado por um colega de CPOR, Ricardo Gruba, depois diretor
do departamento de Segurança Empresarial: a central de espionagem da Vale, que
emprega cerca de 200 funcionários e utiliza quase 4 mil terceirizados (os
números foram fornecidos por André, a Vale não disponibiliza a informação).
Responsabilizou-se pessoalmente pela instalação de grampos nos telefones de dois
funcionários, um deles o gerente-geral de imprensa, Fernando Thompson, e revelou
a existência de uma série de dossiês contra lideranças sociais como o advogado
Danilo Chammas e o padre Dario, da ONG Justiça dos Trilhos, de Açailândia,
Maranhão; o premiado jornalista Lúcio Flávio Pinto, crítico aguerrido da atuação
da empresa no Pará; Raimundo Gomes Cruz Neto, sociólogo e agrônomo do Cepasp –
Centro de Educação, Pesquisa, Assessoria Sindical e Popular – em Marabá (PA);
Charles Trocate, líder do MST, e até da presidente Dilma Roussef, quando ela era
ministra das Minas e Energia. “Algumas informações como essas sobre a Dilma eram
obtidas através de dados públicos, notícias de jornais, redes sociais, mas
outras eram levantadas através de espionagem mesmo, incluindo a dos
infiltrados”, diz André Almeida.
Sobre
os demonstrativos de nota fiscal entregues ao MPF, explicou que eles lhe eram
passados pela Network para conferência dos serviços a serem pagos, e não
apareciam discriminados nas notas fiscais emitidas pelo Departamento de
Suprimentos, que ignorava a natureza exata dos serviços prestados. “Era minha
função receber esses dados e conferir junto aos solicitantes [da Vale], pois,
além dos itens fixos, outros eram pedidos diretamente pelos integrantes do
Departamento de Segurança Empresarial sem passar pelo meu crivo”, explicou. Os
dados da Network eram comparados aos das planilhas confeccionadas pelos
funcionários da Vale que solicitavam os serviços, orientação reforçada por um e-mail de outubro de 2011 do diretor de
Segurança Empresarial, Gilberto Ramalho (que substituiu Gruba em 2011), “visando
melhor controle sobre a apropriação dos serviços prestados pela Network”, que
dava as instruções para o preenchimento das planilhas.
“Um
exemplo de pedido direto (à Network) foi a infiltração de um agente no movimento
Justiça nos Trilhos pelo Gerente Geral de Segurança Norte, Roberto Monteiro”,
diz, mostrando um demonstrativo de junho de 2011, com o
pagamento total de R$247.807,74 a Network. Ali, na prestação de contas do
Escritório Norte (Pará e Maranhão), no item “Rede Açailândia”, consta a despesa
de R$ 1.635,00 referente ao “recrutamento de colaborador de nível superior, em
fase experimental, para atuar junto à Justiça nos Trilhos e outras atividades
dos MS (Movimentos Sociais) em Açailândia/Maranhão”.
Um
parêntesis necessário: o planejamento da Vale é dividido em Sistema Norte – que
engloba as minas de Carajás de onde são extraídas 90 milhões de toneladas de
minério de ferro de alta qualidade, exportado para a Ásia pelo complexo
ferro-portuário Estrada de Ferro Carajás – que vai das minas ao terminal de
exportação da Vale próximo São Luís do Maranhão; e Sistema Sul – que tem como
coração a extração de minério em Minas Gerais, mais da metade da produção total
da Vale, levado pela Estrada de Ferro Minas – Vitória até o porto de Tubarão, no
Espírito Santo.
Do
ponto de vista da segurança, o escritório Norte é o mais problemático por
envolver uma grande extensão de território – entre a ferrovia e o porto são
quase 900 quilômetros, cortando áreas indígenas, quilombolas e de outras
populações tradicionais. Por isso, foi ali que o atual diretor de Segurança
Empresarial da Vale, o cadete-aviador Gilberto Ramalho, começou a montar o
modelo de vigilância da empresa na ditadura militar, quando ainda era gerente e
o pólo exportador na Amazônia passou a operar, em 1985.
Na
época, devido à presença intensa de garimpeiros, madeireiros, grileiros e
pistoleiros e a violência permanente, alguns “homens de visão”, como Tolentino
Marçal, começaram a “profissionalizar” essas milícias através de empresas de
segurança – a dele era a Sacramenta e trabalhou para a Vale até alguns anos
atrás, quando o enorme passivo trabalhista da empresa (mais de 5 milhões de
reais) e episódios com vigilantes armados e de suspeita de desvio de armas
levaram a sua substituição pela Network. Alguns “informantes” avulsos desta e de
outras empresas terceirizadas, porém, em Marabá, Barcarena, Parauapebas e Belo
Horizonte, continuam a prestar serviços para a Vale através da Network, com seus
pagamentos registrados no demonstrativo – como a rede ABC, de Barcarena/PA
(R$4.563,00), “um colaborador e agente” na rede Marabá (R$3.381,68) e na rede
Carajás/Parauapebas (R$ 7.754,11).
“São
heranças que a Network se viu obrigada a assumir, pois os ‘toucas ninja’ estavam
nessa situação complicada há vários anos em outras empresas terceirizadas de
vigilância. A tão falada reorganização da Segurança Empresarial feita pela atual
gestão, simplesmente trocou o diretor ( Gruba por Ramalho), todos os demais
integrantes, próprios ou terceirizados, permaneceram fazendo o que sempre
fizeram”, diz ele.
Ramalho
é um dos funcionários mais antigos da Vale e continua influente na região. De
acordo com André Almeida, embora estivesse atuando como gerente em Minas Gerais
quando ocorreu o Massacre de Carajás, em 1996, teria sido ele o negociador da
operação policial que resultou no assassinato de 19 sem terra – nos autos do
processo do massacre, a Vale aparece como financiadora da operação,
destinada a liberar a passagem dos caminhões da empresa (as minas ficam a cerca
de 90 quilômetros do local do crime), obstruída pelos manifestantes atacados
pela polícia.
O
MST ainda é o principal alvo da segurança da Vale, ao lado da rede Justiça nos
Trilhos, sediada em Açailândia, no Maranhão, que reúne diversas entidades de
direitos humanos em defesa da população atingida pelas atividades do pólo
exportador. Há mais de 2 anos, a rede trava uma batalha judicial com a Vale
contra as obras de ampliação da ferrovia – feitas sem licenciamento ambiental –
para escoar a produção em expansão das minas de Carajás, impactando ainda mais a
vida das comunidades que vivem no entorno dos trilhos por onde circulam
gigantescas composições ferroviárias, de 9 a 12 vezes por dia, cortando reservas
ambientais e território indígena e quilombola.
Os
acidentes ferroviários estão entre os motivos recorrentes de protesto, mas os
trilhos não tem proteção nem passarelas na maior parte dos casos, como se vê nas fotos. O mesmo demonstrativo
inclui R$1.360,00 para “despesas com o envio e manutenção de agente, oriundo de
Belém para Marabá, para a Op. Trilho em Marabá nos dias 12, 13, 14 e 15 de
maio”, dias em que os protestos pelo atropelamento de um idoso interromperam a Estrada de Ferro
Carajás, da qual a Vale é concessionária.
A
rede Justiça nos Trilhos também é uma das articuladoras do movimento Atingidos
pela Vale, do qual participam sindicalistas e lideranças comunitárias de
diversos Estados e de outros países onde a multinacional atua – são mais de 30
-, comandada pela sede no Rio de Janeiro. Essa articulação promoveu uma votação
mundial pela Internet que deu à Vale o troféu de “Pior Empresa do Mundo” de
2012, entregue pessoalmente ao presidente da Vale, Murilo Ferreira.
O CORONEL MEDALHADO DA VALE/NETWORK
No
escritório Sul – centralizado em Belo Horizonte – quem orientava os serviços de
inteligência da Network era o coronel da reserva, Roger Antonio Souza Matta, um
ex-gerente de segurança da Vale que deixou a empresa em 2009, durante uma crise
econômica. “Ele não precisava do emprego e se ofereceu para sair, evitando que
outros fossem demitidos, passando a trabalhar junto à Network”, explica André.
“Era como um pai para nós”, diz.
Premiado
com a Medalha do Pacificador do Exército em 2010, e figura influente em Minas
Gerais, o coronel Roger dá aulas de especialização em inteligência na Fundação
Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais e ocupa o cargo de chefe
da Assessoria de Integração das Inteligências do Sistema de Defesa Social da
Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS). Depois de dizer por telefone que
não conhecia o departamento nem o coronel, a SEDS confirmou o cargo e o nome do
coronel através de um e-mail de sua assessoria de imprensa, mas não deu o
contato do coronel, já procurado insistentemente pela Pública por seu e-mail
pessoal e telefones que constam da lista telefônica de Minas Gerais.
Indagado
sobre o assunto, Marcelo Ricardo Roza, diretor da Network e filho do militar, já
falecido, que fundou a empresa, disse que “nem conhecia o coronel” e que ele
“não prestava qualquer tipo de serviço à empresa”, embora ele seja citado em
mais de um e-mail trocado com o departamento de segurança da Vale como o
responsável da Network pelo monitoramento dos movimentos sociais, principalmente
em Minas Gerais.
Em
um e-mail enviado em 9 de janeiro de 2011 aos funcionários
da segurança, Orlando Sá, então gerente geral de segurança empresarial do
Sistema Sul, orienta: “Aproveito a oportunidade para reiterar a recomendação
outrora realizada de que nenhum de nossos integrantes (próprios e/ou terceiros)
poderá ser utilizado no “levantamento de informações de campo”, que deverá ser
realizada pela equipe do Cel Roger (Net Work)”.
Entre
os membros dessa equipe, estava o capitão de mar e guerra Mauro Paranhos, que
em e-mail, enviado em 16 de agosto de 2010 alertava
Ricardo Gruba, então diretor de Segurança Empresarial da Vale: “No Rio de
Janeiro, em reunião sobre o Plebiscito Popular pelo Limite de Propriedade, a ser
realizado durante o Grito dos Excluídos de 2010, foi divulgado que nos dias 18,
19 e 20 de agosto, o MST fará agitação e propaganda da Reforma Agrária e contra
o Agronegócio. O Plebiscito Popular será abordado entre os temas a serem
tratados”.
No
mesmo sentido, outro e-mail do analista da Vale, Nilo Manoel de Oliveira Filho,
esse sobre atividades do MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens – em
Itueta, na Estrada de Ferro Vitória Minas, cita o coronel: “André, estarei
inserindo os dados no Omega (o sistema de informática utilizado pela segurança).
Solicito apoio do Cel Roger no acompanhamento das ações de movimentos sociais,
que representem ameaças aos sites da Vale em MG, em especial BH”.
Os
demonstrativos de nota fiscal da Network mostram ainda que a empresa pagava uma
dupla de agentes contratados em Belo Horizonte por cerca de 15 mil reais: “valor
mensal, incluindo salário, plano de saúde, vale transporte, vale alimentação,
todos os direitos trabalhistas, aluguel de veículo de acordo com padrões Vale
(os carros da empresa, alugados, tem logotipo e códigos que identificam que
rotas estão autorizados a utilizar dentro das plantas da companhia), cota e
controle de combustível (em BH/MG)”. Os dois agentes, segundo a denúncia de
André Almeida no MPF, um deles chamado Rubinho, “executavam ações fora do escopo
do seu contrato de trabalho”.
Também
faziam parte dos serviços da Network os relatórios semanais de inteligência sobre os
movimentos sociais, as análises de LDB (levantamento de dados básicos) sobre
funcionários em contratação – segundo André, com dados sobre antecedentes
criminais obtidos ilegalmente no Infoseg – levantamento de empresas que
trabalham com a Vale, relatórios sobre movimentos sociais com fotos de cartazes,
reuniões (com círculos nos rostos das lideranças a ser identificadas), protestos
de rua, e “atualização de atores selecionados” (os dossiês), alguns
realizados com ajuda dos infiltrados que, de acordo com a denúncia ao MPF
incluíam, além dos casos citados, um indivíduo que fornece informações
antecipadas e fotos de reuniões” no Assentamento Palmares II (do MST, em
Parauapebas/PA); “um indivíduo de nome Braz, ex-integrante do Ministério da
Marinha no MST/RJ; “um informante com boas relações” na Prefeitura de
Parauapebas (que concentra a maior parte do CFEM, a taxa de mineração, por ser a
sede das minas da Floresta de Carajás) e “uma funcionária ou vereadora” na
Câmara de Vereadores de Anchieta/ES, onde a Vale enfrentava problemas para a
liberação de licenças ambientais do projeto siderúrgico Ubu, por fim conseguidas
no ano seguinte. O demonstrativo daNF de abril de 2010 também cita o pagamento de um
“informante quilombola” por R$ 1.000,00, o levantamento “da atual diretoria do
Comitê Carajás e abertura de prontuário de seus nove membros”, “o levantamento
nominal de 16 integrantes do Movimento Mineiro dos Atingidos pela Vale”.
A
infiltração mais grave do ponto de vista legal teria sido realizada “em diversos
órgãos do Tribunal Regional do Trabalho em São Paulo, de delegacias policiais do
Estado de São Paulo e da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São
Paulo para verificar a autenticidade de um documento de autuação, por trabalho
escravo, da ALL Malha Paulista” de acordo com o mesmo demonstrativo de junho de
2011 da Network, que cobrou R$7.750,00 pelo serviço de espionagem nos órgãos
públicos sobre a empresa ferroviária, ligada a interesses comerciais da Vale no
setor.
Outra
do mesmo gênero, que consta do anexo 2 enviado ao MPF, refere-se a um relatório
de 13 de setembro de 2010, custou R$10.240,00 e está descrita como “Operação de
inteligência em São José dos Campos/SP e infiltração no setor Regional do DPF
local para o levantamento dos dados que instruíram o processo (já arquivado pelo
Ministério Público) de estelionato contra um empresário parceiro da Vale, cujo
comportamento está sendo questionado. Contatos e levantamentos junto à Obra
Social Magnificat, vítima do estelionato do citado empresário”. (Veja a
íntegra abaixo)
Esse
documento serviu de base para a única denúncia em investigação até agora pelo
MPF – a de suborno de agentes federais, sobre a qual André foi ouvido a pedido
do MPF de São Paulo (onde teria ocorrido o ilícito) há um mês. As demais
acusações foram remetidas pelo MPF-RJ ao MPE-RJ, para verificar se há indícios
de crimes estaduais, que por sua vez foi enviada em 12 junho passado para a
5a Delegacia
do Rio de Janeiro para investigação.
O “PRODUTO” MPSI – MOVIMENTOS POLÍTICOS, SOCIAIS E INDÍGENAS
A
Pública teve acesso a fotos e relatórios feitos a partir de infiltração em
outros movimentos sociais como o Movimento pelas Serras e Águas de Minas Gerais,
os ambientalistas do Pó Preto, do Espírito Santo, os movimentos sociais de
moradores e pescadores da baía da Sepetiba, no Rio de Janeiro, onde fica a TKCSA
– Companhia Siderúrgica do Atlântico – uma sociedade da Vale com a alemã
Thyssen-Krupp, que pôs sua parte à venda sem atrair compradores – a poluição
causada pelo empreendimento foi alvo de protestos até na Assembléia dos
Acionistas, na Alemanha, pela chuva ácida e presença de resíduos tóxicos no ar
que vem trazendo graves prejuízos à saúde da população como constatou uma
pesquisa de Fiocruz/Manguinhos.
Esse
trabalho, realizado pelo departamento de Segurança em parceria com as
terceirizadas, era apresentado ao restante da companhia como “um produto” –
assim como “combate a fraude” – batizado de MPSI (monitoramento de Movimentos
Políticos, Sociais e Indigenas) com relatórios realizados semanalmente pela
Network e, nos casos de destaque, com a apresentação de mosaicos (como eram
chamados os “cases” que mereciam apuração) ao diretor do departamento e mesmo em
reuniões mais gerais. “Tanto o Gruba como o Gilberto mostravam esses mosaicos em
reuniões da diretoria, para aparecer, justificar as PRs (Participação nos
Rendimentos, oferecidas aos que cumprem as metas). Mas eu nunca vi, só ouvia os
relatos e recebia os parabéns”, diz.
A
Pública obteve alguns desses mosaicos, entre eles o da Caravana de Minas no I Encontro dos Atingidos
pela Vale, realizado em abril de 2010, onde é identificada a presença de
lideranças sindicais, além de dezenas de fotos de reuniões fechadas – em que o
fotógrafo aparentemente é percebido como alguém do movimento, e nas ruas – algumas delas posadas diretamente para a câmara,
como as que documentam o movimento dos Atingidos pela Vale em frente à casa do
ex-presidente da Vale, Roger Agnelli, corroborando as informações de alguns dos
personagens retratados – de que o agente da Network havia se apresentado como
jornalista.
Também
fica evidente a proximidade da companhia com os aparatos públicos de segurança e
o exagero das reações diante das manifestações populares, como acontece no caso
apresentado como “Missão Outdoor”, quando manifestantes do
movimento “Pó Preto”, do Espírito Santo, que protestam contra a já comprovada
emissão de poluentes pelo complexo siderúrgico de Tubarão, picharam em 2012 os
outdoors da Vale relacionados à festa da Penha em Vitória, uma das maiores
festas religiosas do país, realizada na semana santa. Os funcionários da
companhia moveram uma investigação e mobilizaram os órgãos policiais para tentar
encontrar “os culpados”.
Um e-mail enviado a Eugênio Fonseca, do
departamento de Pelotização no Espírito Santo, pelo então secretário do
meio-ambiente de Vila Velha, alertando para uma manifestação de protesto dos
moradores da Praia das Gaivotas contra operações de dragagem da empresa que
estavam enlameando as praias do município, deixa claro o relacionamento
privilegiado da companhia com a prefeitura. Prevenidos, os diligentes
funcionários da segurança acompanharam e fotografaram a manifestação com pouco
mais de 30 pessoas, e confeccionaram o mosaico para apresentar à diretoria.
ANTIÉTICO OU ILEGAL?
A
hostilidade da Vale em relação aos movimentos sociais e sindicais não é novidade
e não pode ser atribuída apenas a gestões anteriores – embora algumas
ilegalidades tenham sido extintas, como o uso de policiais na ativa na segurança
do presidente da companhia, como ocorria na gestão Roger Agnelli. Em 2011 e
2012, a companhia foi denunciada na OIT pelo Sindiquímica do Paraná por práticas
anti-sindicais (portanto na atual gestão, de Murilo Ferreira). De acordo com
Gerson Castellano, presidente do sindicato, isso se deveu a intimidações feitas
pelo responsável por Relações Trabalhistas da empresa em reuniões do Sindquímica
do Paraná (onde era dona da Ultrafértil, depois comprada pela Petrobrás),
seguidas de um tiroteio nas vidraças do prédio da entidade por autores não
identificados, em agosto de 2012, após a reeleição da chapa que se opunha contra
a companhia.
Além
disso, os contratados da Network “continuam a fazer o que sempre fizeram”, diz
André, assim como a segurança da Vale, o que inclui espionagem aos movimentos
sociais, interceptações telefônicas e revistas em gavetas e computadores dos
funcionários (segundo a denúncia ao MPF, “hackeados pela segurança”, entre
outras coisas para fornecer subsídios para demissões por justa causa, vista como
“recuperação de ativos” por poupar verbas com indenizações, o que foi confirmado
por outros ex-funcionários que não quiseram se identificar. A Vale é uma das
maiores litigantes da Justiça do Trabalho e, em fevereiro passado, foi condenada por assédio processual (uso abusivo
de recursos legais para defender seus interesses) pelo juiz Hudson Teixeira
Pinto, titular da 2a vara de Trabalho de Governador Valadares.
De
acordo com diversos especialistas consultados pela Pública, porém, a infiltração
e o monitoramento de movimentos sociais não é tipificada como crime no Brasil,
daí o fato de o MPF do Rio de Janeiro ter decidido investigar por enquanto
apenas a denúncia de suborno relacionada à Polícia Federal. Teria que apurar
também as denúncias de interceptação telefônica, uso ilegal do Infoseg e de
dados da Receita Federal. Segundo o procurador Ubiratan Cazetta, do Ministério
Público Federal do Pará, porém, as denúncias envolvendo crimes federais
tipificados não necessitam de provas legais para que sejam investigadas,
bastando apenas que a denúncia seja feita por alguém que tem elementos para
fazê-la (proximidade dos fatos, por exemplo) e contexto coerente.
O
que parece ser o caso do whistleblower tupiniquim, que chegou inclusive a fazer
as denúncias pelo canal reservado para esse fim no site da Vale. No dia 27 de
agosto passado, André se ofereceu para depor como testemunha em audiência
trabalhista do engenheiro João Rabelo, demitido por justa causa junto com a
mulher, a advogada, Karina Rabelo (ela sem justa causa) em 2008. Sua intenção
era confirmar o uso de dados da Receita na investigação do “case”, da qual
participou pessoalmente, e que rendeu prestígio (e Participação nos Resultados)
para equipe que supostamente teria detectado um superfaturamento de R$ 3,4
milhões em obras do complexo Brucutu, em Minas Gerais, do qual ele Rabelo era
gerente geral.
Em
janeiro de 2013, Rabelo foi inocentado dessa acusação pelo Ministério da Justiça
de Minas Gerais, que requereu o arquivamento do inquérito policial, aberto pelas
denúncias da Vale. Na audiência, André nem precisou depor: o preposto da Vale, o
diretor Luiz Carlos Rodrigues, afirmou que a empresa havia detectado
“enriquecimento ilícito” do engenheiro em seu Imposto de Renda – obtido sem o
conhecimento do funcionário.
O
caso envolvendo a segunda maior mineradora do mundo, que responde sozinha por
10% das exportações brasileiras, teve uma aparição relâmpago no noticiário, logo
após a denúncia, através de uma nota passada por André à coluna Radar, da
Revista Veja. Logo após a nota no Radar, no dia 25 de abril, o presidente da
Vale, Murilo Ferreira, convocou a imprensa para uma conference call . Questionado sobre o assunto
pelo repórter Rafael Rosas, do Valor Econômico, que teve a colega grampeada em
uma investigação interna sobre o vazamento de informações à imprensa, Murilo
disse: “Com relação a isso, consoante o meu despacho com o presidente do
conselho, Dan Conrado, nós passamos para que fosse feita toda avaliação para
auditoria da empresa.(…) Uma coisa que eu queria salientar: essa área foi
reestruturada, inclusive a área da qual fazia parte o sr. André Almeida não
existe mais. Ele foi demitido, é preciso também fazer essa colocação. Eu não
faço essa colocação no sentido de desqualificá-lo, pelo contrário, acho que
todas as denúncias têm que ser apuradas, mas é a realidade dos fatos. O sr.
André Almeida foi demitido por justa causa por largo e intensivo uso do cartão
corporativo em despesas pessoais”, disse, embora a Justiça do Trabalho exija
sigilo sobre os motivos de demissões por justa causa, como destaca o advogado
Ricardo Régis Ribeiro, que move as ações trabalhistas de André – uma pela
reversão da justa causa e outra por danos morais.
Segundo
André, seu chefe estava ciente de que teria ocorrido “um equívoco” no uso do
cartão e estava sendo descontado em folha pela dívida quando foi demitido. A
notícia de que ele teria gasto 6 mil reais em uma conhecida casa de prostituição
no Rio de Janeiro – em uma única ocasião – também “vazou” para imprensa. Segundo
uma fonte ouvida pela Pública André costumava frequentar a casa com conhecimento
da chefia para levar “convidados” da Vale – basicamente sindicalistas mineiros a
quem a companhia queria “agradar”.
Ao
ser indagada mais de quatro meses depois (10/09) se queria comentar o assunto e
qual tinha sido o resultado da auditoria, a assessoria de imprensa da Vale
respondeu apenas: “O resultado da auditoria, como já explicamos em outras
oportunidades, quando concluído será ou foi entregue (grifo meu) ao Conselho de
Administração, a quem a área se reporta”.
Quanto
à empresa Network, que segundo o denuncianteera responsável pela investigação de
funcionários e dos “inimigos” da Vale em geral, utilizando os
expedientes citados na denúncia, o diretor Marcelo Ricardo Roza disse, em junho
deste ano,quando a Pública já apurava o caso, que a empresa não poderia detalhar
os serviços prestados à Vale “por cláusulas de confidencialidade do
contrato”,que lhe rende entre 180 e 400 mil reais por mês, de acordo com os
demonstrativos das notas fiscais. Avisado no dia 9 de setembro de que a
reportagem da Pública dispunha de novos documentos, Ricardo, em viagem, chegou a
confirmar uma entrevista a ser feita nos dias 10 ou 11 de setembro por skype,
que acabou não se concretizando
Na
entrevista concedida em junho, o dono da Network confirmou que André Almeida era
o gestor o do contrato da Vale mas se preocupou em negar peremptoriamente as
interceptações telefônicas, a quebra de sigilo bancário e o acesso a dados
protegidos do governo federal no Infoseg – que centraliza as informações
criminais dos órgãos de segurança do país e só pode ser acessado por eles – e da
Receita Federal, todos esses crimes federais pela legislação brasileira. Mas,
embora não tenha confirmado a investigação dos movimentos sociais, disse que
esse tipo de trabalho não constava das proibições éticas de sua empresa porque
não era delito penal.
Para
minha surpresa, ele tinha razão.
ESPIONADOS BUSCAM INVESTIGAÇÃO FEDERALCharles Trocate, da coordenação nacional do MST no Pará, é uma pedra no sapato da Vale em Parauapebas, município que sedia as minas mais promissoras da companhia, na Floresta de Carajás. Ele é um dos articuladores do assentamento Palmares II, que ocupa áreas próximas aos trilhos da Estrada de Ferro Carajás. “Nesses últimos anos, Parauapebas é um campo de disputa da luta pela terra e da luta da mineração”, define Trocate.Por isso ele não se supreendeu com as notícias de que tem sido espionada pela Vale, fato que já conhecia por experiência própria, diz, lembrando, por exemplo, um episódio ocorrido no final de 2007, quando depois de uma duradoura interrupção da ferrovia por cerca de 300 integrantes do movimento, cerca de 60 agentes da Vale se misturaram aos manifestantes se fazendo passar por funcionários da prefeitura de Parauapebas, por jornalistas e até por membros do movimento. “Não houve inquérito da Polícia Federal em campo. Os informantes da Vale no Pará juntaram todas as peças que eles tinham e entregaram à Polícia Federal dizendo quem é quem na organização, na direção do MST com fotografias, filmes e imagens”, afirma o ativista.Também a rede Justiça nos Trilhos desconfiava da espionagem da Vale, embora tenham, sim, se surpreendido com a infiltração de agentes no movimento: na rede e entre os quilombolas, segundo os documentos no MPF-RJ. “Ficamos muito tristes com essa atitude da Vale”, diz o padre Dario que como Danilo Chammas era um dos “atores políticos” monitorados pela empresa via Network.Diante das revelações do ex-gerente de segurança ao MPF, o MST e o movimento Justiça nos Trilhos foram a Brasília no dia 28 de maio para levar aos órgãos governamentais um dossiê contendo as denúncias de espionagem contra a Vale. Uma comissão formada pelos dois movimentos e entidades internacionais entregou o documento à Presidência da República, ao Ministério da Justiça, à Secretaria Especial de Direitos Humanos, à Procuradoria Geral da República, à Procuradoria Geral do Trabalho, à direção geral da Abin, às presidências da Câmara e do Senado e à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado.“Os interesses da empresa significam o controle da própria sociedade. Parece que esse tipo de atuação é parte da estratégia empresarial”, afirma o deputado federal Chico Alencar, do PSOL-RJ, que montou uma Comissão de Direitos Humanos e Minorias – “paralela e informal” – na Câmara dos Deputados depois de se desentender com o presidente da comissão oficial: o pastor Marco Feliciano (PSC-SP). Foi pra ele que os movimentos entregaram o dossiê na Câmara. “A Vale não tem nenhuma autorização judicial para fazer isso e não é um ente público de fiscalização e controle. Fere o direito democrático das pessoas se reunirem, se manifestarem e estabelece um controle social completamente ilícito, ilegal”, afirma.A senadora Ana Rita (PT-ES), presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, diz que encaminhou a denúncia dos movimentos ao Ministério da Justiça: “Eles trouxeram um documento farto, com muitas informações e aí solicitamos ao Ministério da Justiça que atuasse no sentido de verificar isso”. Ana Rita também revelou que a comissão realizará uma audiência pública sobre o assunto, que deve acontecer no final deste mês ou na primeira quinzena de outubro, sendo que o Ministério da Justiça e a PF serão convidados a participar. “Nenhuma instituição, nem pública, nem privada pode fazer isso, a não ser a Polícia Federal. Isso deixa os trabalhadores muito intranquilos, porque eles deixam de saber se as pessoas com quem eles estão se relacionando são realmente confiáveis ou não, então fere, inclusive o relacionamento profissional. Na minha opinião, o principal direito humano atingido é o direito de organização das pessoas”, resume.Em contato com a Pública, a assessoria de imprensa da Procuradoria Geral do Trabalho informou que entrou em contato com o coordenador de Liberdade Sindical (o órgão se divide em oito coordenadorias temáticas) e que ele não tinha conhecimento sobre o assunto. A assessoria informou ainda que iria apurar nas outras sete coordenadorias, mas não o fez a tempo do fechamento da reportagem. A Secretaria Especial de Direitos Humanos, ligada ao gabinete da Presidência da República, informou que recebeu o dossiê com as denúncias de espionagem e o encaminhou ao Ministério Público Federal para investigação. No entanto, a assessoria não informou para qual procurador o documento foi enviado, nem o teor da denúncia feita ao MPF.Já a Procuradoria Geral da República afirmou que não encontrou nenhuma denúncia ou informação relacionada ao dossiê na ouvidoria do órgão. Até o fechamento da reportagem, o Ministério da Justiça não informou à Pública se recebeu o dossiê com as denúncias de espionagem da Vale.
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